ARZ161.13 Uma lição de sabedoria e generosidade do chefe índio

Os expedicionários, gelados, reuniam-se em torno da fogueira; uma mulher servia-lhes café, outra entregava a cada um, um pequeno pedaço de carne seca. Eram os últimos víveres.

«Montana», sentado junto do fogo, aceitou o pequeno pedaço de carne e, empunhando uma grande faca de esfolar, começou a parti-la em pedaços ainda menores, que dava às crianças. Enquanto o fazia, observava os que o rodeavam. Queria que vissem a faca com a qual estivera a ponto de ser assassinado nessa noite.

Só o «Patriarca» lhe disse:

— Não lhe conhecia essa faca, Roscher...

— Encontrei-a esta noite, em circunstâncias bastante curiosas, chefe.

Não houve mais perguntas. Todos apertaram os pedaços de manta com que embrulhavam as botas e prepararam-se para retomar a marcha. Ao longe, cinco «arapahos» a cavalo vigiavam.

Apesar de a manhã ir avançada, quase não havia luz. Roscher sabia o que aquilo significava: ia desencadear-se uma tempestade sobre o Lemhi. «Esta pobre gente está já quase sem forças. Espero que consigam resistir...»

O vento soprava com força, vindo do Este, batendo-lhes nos rostos, tornando mais difícil o avanço. Depois começou a neve, cegando-os, impedindo-os de ver o caminho

— Roscher... vamos esgotar-nos nesta luta — disse o «Patriarca», arquejando.

Roscher sabia-o. E também que precisavam de encontrar uma rota mais abrigada, ou em breve os mais fracos do grupo começariam a cair.

— Diga-lhes que façam um alto, chefe. Vou ver se podemos continuar por melhor sítio.

Os «quáqueres» detiveram-se, deixando-se cair sobre a neve. Roscher afastou-se, deixando o seu cavalo, que era mais um estorvo naquelas condições. Estava a trepar a uma elevação, para examinar os arredores, quando voltou a escutar o ruído que o acordava na noite anterior: o som de passos sobre a neve.

O jovem deteve-se, tocando nos seus revólveres. O som tinha cessado. «Talvez fosse só o vento», pensou. Esperou uns minutos e continuou a caminhar. Naquela altura o vento era terrível.

«Montana» compreendeu que não conseguiria explorar fosse o que fosse e que os «quáqueres» morreriam se continuassem imóveis sob aquela temperatura, pelo que resolveu regressar. 

Voltou-se bruscamente e avançou um passo... e o ar agitou-se atrás dele. Uma sombra escura roçou-o. «Montana», por instinto, deixou-se cair de bruços sobre a neve e, voltando a cabeça, viu a enorme pedra que se tinha enterrado atrás dele. E voltou a escutar o ruído dos passos, que agora se afastavam a correr.

Roscher levantou-se rapidamente.

«É o amigo da faca».

A pedra fora empurrada de cima, mas Roscher não tentou sequer chegar até esse ponto. O que fez foi correr para o ponto onde, calculava, apareceria o homem que fugia.

Viu-o, fugazmente, lançar-se atrás de outras pedras. «Montana», inclinando-se para não oferecer resistência ao ar, rodeou as pedras, cortando-lhe a passagem. Tinha a certeza de tê-lo conseguido. Sobre a neve não se viam pegadas, o homem estava ali, sem dúvida, agachado entre as pedras.

Empunhando um revólver e armando o gatilho, começou a procurar. Sabia que enfrentava um assassino com recursos; por isso agiu com muito cuidado.

Estava no meio de uma clareira, quando ouviu leves passos às suas costas. Não se voltou e caminhou lentamente para outras pedras. Depois rodeou-as a correr. Viu um vulto escuro, agachado. Dois saltos mais e colocou-se atrás dele, apoiando-lhe o cano do revólver nas costas.

— Levante-se, amigo. Duas tentativas de assassínio em poucas horas é muita coisa.

A pessoa agachada voltou-se. Era Deborah, a bela «quáquer». Olhava para Roscher com temor, tremendo, muito pálida.

— Oh, Roscher... Que medo passei. Vim atrás de ti para acompanhar-te. Foi uma imprudência, perdi-me nesta escuridão. Julguei que morria de frio...

Roscher afastou o revólver. Também ele estava muito pálido. Quando ela se lhe lançou nos braços, deixou cair a arma ao solo.

— De modo que eras tu, Deborah... — murmurou.

Ela abraçava-o. Roscher levou-a para junto de uma pedra, para que se sentasse. Deborah dizia:

— Não te zangues. Foi uma loucura, só queria acompanhar-te, estar sozinha contigo algum tempo...

«Montana» perguntou:

— Por que quiseste matar-me, Deborah? Ontem à noite com a faca, agora com a pedra...

Ela abriu muito os olhos.

— Matar-te? Há pouco falaste em assassínios! Eu não tentei matar-te, Roscher! Eu amo-te!

Roscher olhava-a com tristeza.

— Sem dúvida amavas verdadeiramente o Jonathan e tens estado a enganar-me, esperando o momento de vingar a sua morte. Sim, amavas o Jonathan, e por isso tentaste...

Antes que Deborah pudesse falar fê-lo outra pessoa, com voz apagada e rouca. Um homem que acabava de recolher da neve o revólver que Roscher deixara cair. Um dos «quáqueres» do grupo, um homem em quem «Montana» quase não tinha reparado até então.

— Não. Engana-se. Ela nunca o tinha amado. Desprezava-o. E você matou-o. Por isso vou matá-los aos dois. Tinha pensado vingar-me dela mais tarde, mas vou aproveitar a oportunidade.

Deborah sussurrou, assustada:

— É o irmão do Jonathan...

— Sim, sou o irmão do homem que tu desprezaste e que você assassinou, Roscher. Ensinaram-me a perdoar e a amar os outros, mas desde que chegámos a esta terra tudo mudou.

— O seu irmão foi o primeiro a mudar, amigo. Converteu-se num assassino feroz. Não merece que você mate por ele. Morreu justamente, asseguro-lhe. A Deborah nunca prometeu amá-lo e você sabe-o.

O irmão de Jonathan praguejou entre dentes. Numa coisa não se enganava: aquela terra tinha mudado a mentalidade de muitos deles. Ia disparar, estava a apertar o gatilho...

Um silvo, uma pancada seca. O homem largou a arma, com uma expressão de assombro; depois começou a cair, para a frente, muito lentamente. Quando ficou estendido sobre a neve, imóvel, das suas costas sobressaia a escura e longa haste de uma lança. Uma lança com um penacho de penas negras.

Deborah escondeu o rosto no peito de «Montana». Da escuridão surgiu um homem a cavalo. Era Moose John, o chefe dos «arapahos». Olhou fixamente para o homem caído e depois para os dois jovens.

— Sigam o vosso caminho. Estão a perder muito tempo e o prazo não será ampliado — disse.

— Obrigado, Moose John. Salvaste-nos as vidas.

Moose John sorriu muito levemente.

— Tu és o guia. Sem ti essa gente nunca sairá do Lemhi. E eu prefiro que vão embora a ter de matá-los.

Fez retroceder o seu cavalo e desapareceu.

 

Já não restavam víveres nem café. Aliás, o café não teria servido para nada, havia várias horas que não encontravam lenha para queimar, estavam na zona mais plana de Lemhi. Só neve e pedras.

As pernas enterravam-se até aos joelhos enquanto caminhavam, o frio tornava-se cada vez mais intenso. O vento derrubava por vezes os infelizes «quáqueres».

Roscher «Montana» sabia a verdade. Iam morrer, nunca chegariam à passagem, a tempestade era cada vez mais violenta. Com a noite chegaria a morte para todos.

O chefe dos «quáqueres» também o sabia. Roscher notou-o no modo como o olhava. Quando anoitecia, «Montana» fez uma última tentativa.

— Vamos deter-nos para aproveitar a pouca luz que resta. Temos de encontrar uma depressão, uma cova, um pouco de lenha...

O «Patriarca» assentiu:

— Sim. De outro modo...

Mas já a capa de neve era tão espessa que nem podiam tentar encontrar a vegetação. Cambaleando, todos tentavam. Era inútil. Além disso, não podiam separar-se muito, pois corriam o perigo de perder-se. Foram voltando, deixando-se cair no solo, uns junto dos outros.

As mulheres tentavam dar o calor dos seus corpos às crianças, que choravam.

Roscher olhava para o céu. A tempestade ia piorar ainda mais; com a madrugada a temperatura desceria brutalmente e seria o fim para todos.

Embrulhando-se na sua manta, fez um supremo esforço. Partiu com o seu cavalo, para procurar lenha.

Em determinado ponto, cavando com a faca que pertencera ao irmão de Jonathan, descobriu umas moitas. –

— É inútil! Nunca arderão!

Pensando em Deborah, desesperava. E pensando nela voltou para junto dos «quáqueres», que eram uma grande mancha escura sobre a neve.

Procurou a jovem. Estava tentando acalmar o choro de uma criança. «Montana» despojou-se da manta e colocou-a sobre a jovem e a criança.

— Não, Roscher — protestou ela.

Ele sorriu e Deborah começou a chorar. Tinha compreendido que não lhes restava esperança alguma.

Alguns rezavam. A neve ia-os cobrindo a todos; alguém propôs que continuassem a caminhar, mas nenhum deles tinha forças sequer para se manter de pé. Deborah e «Montana», muito juntos, davam calor à criança, que parecia adormecida, mas que, na realidade, estava quase inconsciente.

A jovem, pouco depois, também fechou os olhos. A medida que avançava a noite, o frio ia-se tornando mais intenso. Roscher sentia igualmente um grande desejo de dormir. De fechar os olhos e dormir. E os olhos fechavam-se-lhe, ainda que ele quisesse impedi-lo. Sobressaltado, fez um esforço para abri-los, agitou a cabeça. Sabia que o sangue lhe gelava nas veias.

— Não! Não! — murmurou.

Conseguiu pôr-se de joelhos. Alguém se movia junto dele. Era o chefe dos «quáqueres» que perguntava:

— Não ouve um ruído?

«Montana» pensava que delirava. Mas não, também ele o ouvia. Chegavam cavalos, muitos cavalos.

— Os «arapahos». Decidiram acabar connosco antes do prazo. Sabem que não conseguiremos sair do Lemhi...

As sombras dos cavalos concretizaram-se. Eram muitos. Depois produziram-se outros ruídos. Os índios tinham desmontado e moviam-se em torno dos «quáqueres».

Roscher «Montana» queria distinguir o que faziam, mas quase não conseguia ver.

— Vão usar as facas — dizia o «Patriarca». — Vão degolar-nos a todos. Não querem desperdiçar setas...

Repentinamente, produziu-lhe um esplendor avermelhado, que desapareceu, para surgir de novo com maior intensidade, iluminando a neve. Roscher murmurou:

— É fogo, chefe! É fogo! Estão a acender uma fogueira!

As chamas ergueram-se com força, alegres, tingindo de vermelho os «quáqueres», que se agitavam, como despertando. Depois acendendo-se outra enorme fogueira.

Roscher levantou-se, cambaleante, para voltar a cair. Levantou-se de novo e avançou alguns passos. O calor chegava até ele em ondas. Era uma bênção, Ia cair outra vez quando o agarraram. Dois «arapahos» tinham-no segurado pelos braços. Um terceiro colocou-se diante dele. Era Moose John, que disse:

— Fogo e lenha para mantê-los vivos. Trouxemos pele e comida. Os meus homens trarão mais, quando esta se acabar...

O «Patriarca» tinha conseguido chegar também ali. Outros colonos arrastavam-se, para se aproximarem do fogo. Era quase milagroso como o calor lhes devolvia a vida, com que rapidez despertavam do seu letargo. As crianças corriam para as fogueiras. O «Patriarca» murmurou:

—É um homem bondoso, chefe. Salvou-nos a vida a todos, não esqueceremos. Logo que tivermos forças deixaremos o Lemhi. Tem a minha palavra.

Moose John negou:

— Os meus homens trarão mais ajuda até que a tempestade passe e possam construir as vossas casas: passado o Inverno terão a vossa própria comida e a vossa própria lenha. A comida que obtiverem da vossa terra, a terra do Lemhi, que vos pertence... Foi para vocês uma terra amarga, pela qual pagaram um alto preço. Não seria justo que não conseguissem o que com tanto ardor procuraram.

Deborah tinha-se apoiado a «Montana» e todos os colonos se recuperavam; alguns estavam a ajudar os «arapahos» a levantar tendas, os «tupis», firmando bem as estacas e puxando com força as tiras de couro de cavalo. Roscher disse:

— És o homem mais fantástico que já conheci, Moose John. O mais bondoso, Homens do nosso grupo enganaram-te, ofenderam-te e feriram-te no que mais amavas, e tu ainda nos demonstras a tua generosidade.

Moose olhou para ele com afeto.

— Tu o disseste: também há «arapahos» indignos do nosso povo, também entre nós alguns se deixam enganar pela ambição, pela paixão, pelo ódio. E não é justo que os outros paguem por eles. Creio que todos fomos suficientemente provados; agora poderemos viver em paz. Moose John cumprirá o pacto com o grande chefe de Butte: as terras planas são vossas...

Ergueu uma mão, num gesto de despedida. Os seus homens retiravam-se para os cavalos. Os homens riam junto do fogo, as mulheres desamarravam os sacos de víveres. Pouco tempo depois, não restava um índio na planície.

As tendas foram montadas, com as suas grossas peles. O «Patriarca», Roscher e Deborah olhavam ainda para o ponto onde Moose John tinha desaparecido. O primeiro disse, lentamente:

— A nossa terra... a terra do nosso povo. O chefe índio disse bem: foi uma terra amarga, custou-nos muito caro, por isso tem agora mais valor.

Roscher e Deborah aproximaram-se de uma das fogueiras. Com as mãos enlaçadas, riam felizes. Estavam já a planear a sua futura casa, que levantariam ali mesmo, junto ao rio.

— Quando chegar a Primavera, Roscher, quando florescerem os jacintos na margem, teremos a casa, a terra... E o nosso primeiro filho chamar-se-á Moose John. E sentir-se-á muito orgulhoso por usar o nome de um grande homem!

 

 

 

FIM

ARZ161.12 O salmo da Esperança trouxe o salvador e futuro guia

Algumas mulheres gritaram. Vários homens correram junto do seu chefe, o «Patriarca».

Deborah, que avivava uma fogueira, apressou-se a reunir as crianças que procuravam lenha entre a neve.

Os infelizes «quáqueres», que tinham perdido tudo, sem armas e quase sem roupas, tremendo de frio, contemplaram com assombro e temor as várias centenas de índios que os rodeavam.

— São os «arapahos»! Trazem penas de guerra nas suas lanças! — gritou um homem.

O «Patriarca» ordenou:

— Cala-te! Não é necessário assustar mais as mulheres.

— São muitos, e nós não temos armas nem quem nos defenda.

— Não blasfemes! Sempre tivemos defensor. Se está disposto que paguemos pela má ação dos nossos companheiros, é justo! Mas não há necessidade de assustar as mulheres. Vou falar com o chefe deles.

O «Patriarca» separou-se do grupo, avançando uns passos para Moose John, cuja qualidade de chefe se evidenciava pela sua corte de guerreiros. Mas o avanço do «Patriarca» foi cortado por uma lança, que silvou furiosamente e foi cravar-se ante os seus pés. Moose John disse então:

— Não continues, homem branco. Assassinaram vários dos meus homens, roubaram o que era nosso, trouxeram a guerra ao Lemhi, pagando mal a nossa generosidade. O meu conselho decretou a vossa morte. É inútil falar. Já está tudo dito.

O «Patriarca» inclinou a cabeça, regressando ao grupo. Deborah segurou-lhe um braço.

—Diga-lhe que não fomos nós quem os atacou!

— Achas que não? Esses quinze homens eram dos nossos. Ele tem razão... trouxemos a guerra connosco... Foram «quáqueres» os que assassinaram e roubaram. Fomos nós, filha. É necessário aceitá-lo — ergueu a voz, gritando: — Cantem comigo, irmãos! Cantemos o nosso Salmo à Esperança!

Começou a cantar com voz grave, segura, sem o menor tremor. Pouco a pouco, todos se uniram ao seu canto, até as crianças. Cantavam com força, quase com alegria.

Moose John crispou as mãos. Um dos guerreiros disse-lhe:

— Os homens esperam a tua ordem, chefe.

— A minha ordem! Há mulheres e crianças entre eles...

— Disseram que vinham cultivar a terra e mataram o teu filho e outros bravos para roubar a areia dourada! São mentirosos e falsos, como todos os homens brancos!

— São fracos, como todos os homens, seja qual a sua cor. Mas deve fazer-se justiça... Eles o quiseram, não eu.

Ergueu a lança, mantendo-a quieta durante alguns instantes. Os guerreiros esticaram os seus arcos. Centenas de arcos, com centenas de setas, apontadas ao grupo que cantava com renovada força. Centenas de setas mortais para três dezenas de pessoas que tinham ido para o Lemhi Range na esperança de ali encontrarem uma terra de promissão e que só iam encontrar terra para as suas próprias tumbas,

A lança com o penacho de penas de corvo iniciou o seu movimento. Moose John ia lançar o grito de ataque. Mas nesse mesmo instante soaram dois tiros, que tiveram a virtude de silenciar os «quáqueres» e de deter o movimento da lança do chefe «arapaho».

Pouco depois os tiros repetiram-se. Moose John e os seus guerreiros voltaram-se. E viram um quadro assombroso. Um homem quase coberto de gelo aproximava-se deles, montando um cavalo índio. Atrás dele seguiam outros oito cavalos, arrastando a sua carga. Sacos de couro, e sobre eles quinze cadáveres.

Moose John baixou a lança e com aquele movimento os arcos afrouxaram-se e as setas deixaram de apontar aos «quáqueres».

Roscher «Montana» guardou os seus revólveres. Tinha disparado para o ar ao ver a lança de Moose John, mas não queria que os índios o vissem armado, pelo que guardou as armas e ergueu uma mão num gesto de saudação.

Moose John disse aos seus:

—Deixai que esse homem se aproxime. Traz os cavalos dos nossos homens, e também o ouro. E também cadáveres de homens brancos.

«Montana» deteve-se diante do chefe e falou:

— Moose John, estiveste quase a cometer uma grande injustiça, e sei que tu és um homem justo. A gente que aí está é inocente da morte do teu filho e dos seus companheiros. Os culpados estão aqui, com o vosso ouro e o vossos cavalos. Esses são os assassinos. São os únicos dos colonos que tinham armas de fogo. Quinze traidores quinze loucos, que abandonaram os seus, sem se importarem com a vossa vingança, porque o ouro os enlouqueceu.

Moose John conduziu o seu cavalo para junto dos de carga. Sem desmontar, examinou os corpos. Fez um gesto e um dos seus homens comprovou o conteúdo dos sacos

— Quem os matou?

— Eu. Teria gostado de os trazer vivos, para os entregar à tua justiça, mas não foi possível. Teriam fugido depois de matar-me. Tive de defender-me.

Moose e os seus guerreiros olharam para «Montana» com surpresa. Moose disse:

— És um grande guerreiro... Quinze homens mortos tu sem uma ferida. Mas estes homens vestem como os outros, são do mesmo povo. Do povo que vinha para Lemhi cultivar a terra, viver pacificamente.

— Sim. São «quáqueres». Num grupo de meia centena, quinze resultaram maus, chefe. Mas tu és um homem sábio, tu conheces os homens. Acaso entre os «arapahos: não há também desleais, malvados, traidores, que enganam os outros? Eu sei que nas montanhas mais alta vivem «arapahos» separados das tribos pela sua má conduta, guerreiros que pensaram só no seu benefício e não no de todos. Estes quinze homens mataram, e pagaram o seu crime. Tu, que és um homem justo, não podes castigar todos os outros, os pacíficos que querem estabelecer o seu lar no Lemhi.

Moose John ficou silencioso. Um dos seus homens disse com raiva:

— Mataram o teu filho! Todos devem morrer! Também esse homem que fala, chefe! Já não poderemos acreditar nos brancos! O Lemhi Range é nosso. Fomos generosos e eles trouxeram a morte ao nosso povo.

—Não escutes esse homem, chefe! É a voz do ódio! Tu sabes que o chefe de Buttle enviará muitos soldados! Morrerão as vossas mulheres e os vossos filhos! Quinze homens assassinaram! Só eles são culpados, e estão aqui!

— Ninguém devolverá a vida ao teu filho! — gritou o guerreiro.

Moose John baixou a cabeça. No seu interior travava-se uma luta entre o desejo de vingança e a bondade.

— Também não será matando essa pacífica gente que devolverás a vida ao valente Moose Red! Diz aos teus homens que os revistem! Não encontrarão uma só arma entre eles! Vieram em paz, não para trazer violência! — disse «Montana» persuasivo.

Moose John ergueu a cabeça, respondendo:

— Mas trouxeram a morte, amigo, trouxeram os assassinos.

Os guerreiros gritaram de alegria, começando a voltar os cavalos. «Montana» empalideceu, ao mesmo tempo que gritava:

— Não, chefe, isso não é digno de ti, não cometas essa crueldade! Há mulheres e...

Moose John ergueu uma mão e os seus homens deixaram de gritar.

— Não vamos matá-los. Os culpados foram castigados, é evidente, Mas o pacto não foi cumprido pelos colonos. Os nossos mortos foram vingados. Mas o nosso pacto com o forte Buttle foi quebrado, ainda antes de iniciar-se. Não queremos conviver com eles, não há pacto. O Lemhi pertence-nos e a experiência de compartilhá-lo com os brancos foi um fracasso. Que partam. Se ainda estiverem no Lehmi ao fim de cinco dias, então mataremos.

Roscher não disse nada. Não podia. Moose John era, evidentemente, generoso. O chefe «arapaho» afastou-se com os seus guerreiros. Os outros foram-se agrupando novamente, deixando a beira da depressão. Depois colocaram-se em grandes filas, formando um impressionante esquadrão, com o seu chefe à frente. E empreenderam o regresso à montanha, no mesmo momento em que a ventania voltava com força.

Levavam os cavalos com os sacos de ouro, deixando na neve os cadáveres dos seus inimigos. Na depressão, os «quáqueres» cantavam de novo, desta vez um hino de graças; e agora as suas vozes tremiam.

— Eles foram os únicos «quáqueres» que encontraram a sua terra no Lemhi Range — disse o «Patriarca». -- Terminamos, Roscher. Podemos iniciar a viagem quando quiser.

— Quanto antes. Cinco dias não é demasiado tempo para chegar à passagem Saddle com este temporal. E o Moose John cumprirá a sua ameaça. Atacará se permanecermos aqui mais de cinco dias.

Os «quáqueres» tinham sido enterrados sob a neve as suas tumbas estavam cobertas com pequenos montículos de pedras e toscas cruzes, O «Patriarca», que tinha perdido definitivamente a sua dureza e a confiança em si mesmo afastou-se delas. «Montana» conservava o seu cavalo, o único para toda o grupo. Decidiu que o utilizariam as mulheres e as crianças, por turnos. Disse-o a Deborah, que sorriu.

— Começarão as crianças. Podem ir várias juntas.

Escoltando o cavalo carregado de crianças envoltas em mantas, Roscher e Deborah precediam o grupo, caminhando sobre a neve. A escuridão era muito intensa. Ninguém incomodava já os dois jovens por caminharem juntos, por se falarem, por darem as mãos de vez em quando.

— É uma pena. O Lemhi na Primavera deve ser maravilhoso... Teria gostado tanto de construir a nossa casa junto do rio... — dizia Deborah.

—A casa para os teus pais e para ti, não é verdade? — perguntou Roscher.

Ela assentiu.

— Sim, é isso. Que outra coisa posso pensar?

Roscher voltou a cabeça. Os «quáqueres» avançavam penosamente atrás deles.

— São terras muito ricas. Nunca foram exploradas. Teria sido uma glória cultivar nela trigo e aveia para o gado, ter bons cavalos... Também eu gostaria de erguer essa casa, Deborah. Mas conheço em Butte bons terrenos que poderiam comprar-se, e tenho algum dinheiro no Banco. Estou pensando que talvez os teus pais me aceitassem... como sócio...

Deborah negou.

— Nunca aceitariam o teu dinheiro. Os «quáqueres» não se associam a pessoas de outras comunidades.

— Também não permitem que as suas filhas se casem com estranhos?

Deborah corou.

— Também não. Mas há ocasiões... Conheço um caso em que os pais de uma rapariga aceitaram um estranho na família. A. comunidade deve-lhe muito. Até o chefe deu o seu acordo. Quero dizer... dá-lo-ia, no caso de estranho lhe pedir.

«Montana» segurou-lhe uma mão.

— Pedir-lho-ei, Deborah... Faremos uma grande casa. Os teus pais viverão connosco. Trabalharemos duramente para fazer prosperar a nossa propriedade. E esqueceremos estes dias no Lemhi, esta retirada pela neve...

Deborah sorria, feliz. O grupo continuava o seu avanço. Sabiam que os «arapahos» os vigiavam. Agora deixavam-se ver de vez em quando, ameaçadoramente.

Quando a noite tornou praticamente impossível a marcha, prepararam um alto. Era necessário descansar, comer as poucas provisões que lhes restavam, aquecerem-se.

 Acenderam uma fogueira, mas a busca de um pouco de lenha seca deixou-os esgotados, Os homens deitaram-se sobre as mantas, insensíveis ao frio e à neve que continuava a cair.

Roscher «Montana» foi dos últimos a deitar-se. Deborah e os pais estavam perto. Roscher sentia-se feliz no meio daquele grande fracasso. Havia algum tempo que estava cansado da sua vida selvagem, das suas contínuas correrias; agora ia iniciar-se para ele uma nova vida. <Quando os pais da Deborah se separarem da sua gente e da influência do seu chefe, será mais fácil conviver com eles. Seja como for, são os pais da Deborah, e os pais de uma pequena como ela têm o direito de ser um pouco difíceis».

Bem envolto na manta, adormeceu. O seu sono era o de um homem acostumado à intempérie. Na realidade, nunca estava completamente adormecido, havia sempre nele algo de alerta. Por isso despertou bruscamente, quando a seu lado estalou a neve.

O instinto manteve-o imóvel. Só abriu os olhos. A seu lado havia uma sombra. Não teve tempo de ver mais, pois escutou uma respiração que se tornava mais intensa, um ruído de roupas.

Rodou para um lado, com força. Um grito abafado, depois uns passos que se afastavam, a correr, e a escuridão tragou o atacante. Porque tinha sido um ataque. «Montana» levantou-se. Cravada na sua manta estava uma faca de esfolar, uma arma de folha larga, com o punho muito gasto. Uma arma que estivera quase a cravar-se-lhe no coração.

Pegou na faca, examinando-a. Depois de levantar a manta, cobrindo-se com ela, seguiu as pegadas deixadas na neve. Mas, tal como esperava, perdeu-as pouco depois; sobre a neve endurecida, e de noite, era impossível segui-las.

Regressou ao acampamento. Todos pareciam dormir. Mas Roscher já não conseguiu dormir durante o resto da noite.

 

 

 

ARZ161.11 Os índios prontos para o ataque e para vingar os seus mortos

Na imaginação de Roscher «Montana» estava gravada a depressão onde deixara os colonos. O rosto de Deborah, os seus olhos húmidos à despedida. E pensava constantemente: «Os «arapahos» já terão caído sobre eles? Cada minuto que passa pode ser vital!»

Avançava sobre o seu cavalo, à cabeça do grupo. Jonathan seguia-o a poucos passos, sem deixar de vigiá-lo, empunhando um revólver. Atravessavam um bosque, sobre neve muito branda.

— Eh! tem a certeza de que é este o caminho? — gritou Jonathan.

Roscher não respondeu. Pouco depois deteve o animal, desmontando.

— Que se passa agora? Quer que lhe meta uma bala nas costas? — perguntou Jonathan, agressivo.

— Sei que o faria com o maior prazer. Diga aos seus homens que afastem a neve nessa encosta. Que usem ramos e as mãos. Debaixo dela há boa erva para os cavalos.

Jonathan rugiu:

— Continue, continue, maldito seja! Continue, ou...

«Montana» olhou-o friamente nos olhos.

— Defendo a minha vida. Estes cavalos não poderão continuar se não pastarem e descansarem uma hora. Diga aos seus homens que destapem a erva. Eu vou subir a essa colina, preciso...

— Você não se afasta daqui, maldito traidor! Pode ser que tente fugir!

«Montana» encolheu os ombros, desdenhosamente.

— Como queira. Sei que por aqui há uma passagem, mas não tenho um plano pormenorizado nem a conheço como a palma da minha mão; nunca tentei atravessá-la no Inverno e preciso de orientar-me subindo a uma altura. Mas se prefere que percamos horas e horas nestes caminhos...

Jonathan hesitava. Armou o revólver que empunhava, empunhando também o outro. Os dois revólveres de «Montana».

— De acordo. Mas matá-lo-ei se tentar fugir ou enganar-me. Vou consigo.

Roscher começou a trepar por entre as árvores. Jonathan seguia-o, mantendo uma certa distância, porque não queria ser desarmado de surpresa. Era sem dúvida um homem cauteloso.

«Montana» ouvia os passos atrás de si, mas nem sequer voltava a cabeça. Estava esperando que o outro compreendesse que durante aquelas horas quase não se tinham afastado do sítio a partir de onde começara a guiá-los. Isto é, tinham estado a dar voltas em torno da mesma elevação. E Jonathan notá-lo-ia quando subissem um pouco mais.

Deteve-se, agachando-se e examinando a neve. O que fez, na realidade, foi apanhar um punhado dela em cada mão... Depois continuou a subir, trepando a uma enorme pedra. Já não via os outros «quáqueres».

Jonathan seguiu-o, evidentemente, e quando chegou ao alto e olhou para baixo descobriu o engano. Viu o caminho onde ele próprio tinha armado a emboscada a Roscher. E ficou furioso.

— Estamos no mesmo sítio! Você tentou enganar-nos, «Montana»! Fez-nos andar às voltas! Nunca pensou guiar-nos, e nessas condições a sua vida não vale nada!

Ia disparar. «Montana» lançou-lhe ao rosto a neve que tinha nas mãos. Era um recurso quase infantil, mas surpreendeu o homem, que fechou os olhos e voltou a cara, sem chegar a disparar nenhuma das armas.

«Montana» não lhe deu tempo a retificar. Sabia que estava em jogo a sua vida e a dos colonos. Por isso lançou-se contra Jonathan com um terrível impulso, batendo-lhe com as duas mãos na cara e no peito.

Jonathan foi erguido do solo. Ao cair, as suas botas escorregaram sobre a pedra. A pancada no queixo tinha-o deixado aturdido e por isso não gritou. Não apertou os gatilhos das armas que ainda empunhava, não tentou recuperar o equilíbrio...

Caiu pesadamente do alto da pedra, desaparecendo da vista de Roscher. Tinha caído do lado oposto àquele onde se encontravam os restantes «quáqueres».

«Montana» deslizou rapidamente pela pedra, caindo ao lado de Jonathan. Os dois revólveres estavam no solo. «Montana» recuperou-os, com alívio, apressando-se a apontá-los a Jonathan. Mas o «quáquer» não se movia. Com a ponta de uma bota, Roscher voltou-o. «Está morto... Partiu o pescoço ao cair...» Certificou-se de que assim era e guardou os revólveres nos coldres.

A sorte ajudara-o até àquele momento. O mais perigoso dos seus inimigos tinha ficado eliminado. Mas lá em baixo esperavam-no catorze homens receosos e armados.

«Terei de dominá-los. E as palavras são inúteis para isso.»

Rodeou a pedra, iniciando a descida. Em breve veria os «quáqueres» e os cavalos. Não queria matar aqueles loucos. Tentaria desarmá-los, ainda que não soubesse como. Quando estava perto deles, disse em voz alta:

— O Jonathan pede que uns tantos de vocês subam lá acima. Quer que vejam o caminho e discuti-lo, já que há duas possibilidades. É melhor apressarem-se.

Seis homens, depois de uma breve consulta, iniciaram a subida. Aquilo diminuía de momento o número de inimigos, mas ainda ficavam oito, que olhavam para ele com desconfiança,

«Montana» aproximou-se do seu cavalo segurando-o pelas rédeas para o levar para o sítio onde havia alguma erva descoberta. Estava à espera de que os seis que subiam a encosta se afastassem o suficiente. Mas não pôde escolher o momento para iniciar a ação, porque um dos homens gritou, indicando os revólveres de «Montana»:

— Tem outra vez as suas armas! Esse homem tem as armas, matou o Jonathan!

«Montana» deu um salto tremendo para cair atrás de um dos sacos de ouro e enterrou-se na neve; antes cair já tinha empunhado as armas e começou a disparar.

Os oito «quáqueres» corriam, tentando encontrar refúgio, disparando ao mesmo tempo. As balas silvavam perto de «Montana». Sentiu o impacto de várias delas nos sacos e alguns fios dourados começaram a escorrer para a neve. Mas «Montana» não os via; estava ocupado em disparar rapidamente os seus dois revólveres, movendo-se em leque.

Disparava com rapidez, pois sabia que os seis homens que estavam no bosque não tardariam em aparecer, precisamente às suas costas.

Roscher «Montana» podia ser terrivelmente certeiro com os revólveres, mas aqueles homens que corriam à sua frente, disparando as armas, eram vulgares assassinos. Por isso disparou com precisão, sem deixar de mover as suas armas, sem se importar com as balas que o roçavam.

Os oito «quáqueres» foram caindo antes de encontrarem onde se proteger, em frente de «Montana», gritando uns, em silêncio outros, todos manchando a neve com o seu sangue. Alguns dispararam contra o solo, cravando as balas na neve, que se derretia ao calor do chumbo. Uns instantes e tudo tinha terminado.

Roscher esperava. Nenhuma arma se movia, os homens estavam imóveis...

O guia crispou-se. Tinha os revólveres descarregados. E pelo bosque desciam a correr os outros «quáqueres», que já deviam ter descoberto o cadáver de Jonathan.

Um salto e passou para o outro lado do saco, agachando-se atrás dele. Os seis homens já disparavam, «Montana» estava ainda encolhido, metendo cartuchos nos tambores dos seus revólveres, cujos canos queimavam.

Os gritos e os passos dos seis indivíduos escutavam-se já muito perto. Talvez julgassem que «Montana» estivesse ferido ou morto.

O guia, que sabia que as suas possibilidades não eram muitas, esperou ainda mais, acabando de encher os tambores. Depois levantou-se repentinamente, disparando as duas armas contra os surpreendidos «quáqueres». Enquanto o fazia deslocava-se para um lado, com rapidez.

Os seis homens foram alcançados pelos seus chumbos. Um deles conseguiu manter-se de pé, procurando o seu inimigo, gritando insultos; quando ia disparar contra «Montana», o jovem apertou novamente o gatilho, e o último dos quinze «quáqueres» que o ouro transformara em assassinos caiu fulminado.

Conseguiria chegar junto dos colonos antes que Moose John desse ordem de matar? Ajoelhou-se junto do saco furado e tapou os buracos das balas com tampões de erva. Depois foi colocando os cadáveres sobre os sacos, amarrando-os fortemente com tiras de couro. Os cavalos quase não tinham comido, mas teriam de fazer um último esforço, voltando a Lemhi.

 *

 O silêncio dos cavaleiros era impressionante. Reuniam-se na montanha, vindos dos diversos povoados. Chegavam silenciosos, esperando em grupos, em diferentes planos. Pouco a pouco aquela zona da montanha ficou coberta de cavaleiros, envoltos em mantas, rodeando os respetivos chefes, todos olhando para Moose John que reunido com o seu conselho de anciães, estava no meie do círculo. Por fim, um dos anciães disse, em idioma «arapaho»

— Moose John, estão todos. Só ficaram nos povoados os vigilantes, as mulheres e as crianças.

Moose John respondeu:

— Não quero a guerra nem a violência, todos o sabem. Mas os homens brancos responderam com sangue à nossa generosidade. O seu chefe, em Forte Butte, enganou-nos. Disse que eram pacíficos camponeses, que só queriam lavrar as terras do rio. Eles queriam o ouro, na realidade, e assassinaram por ele. O pacto com o chefe branco ficou quebrado. Sofrerão o castigo que merecem.

O grupo de anciães, que não faria parte da expedição, afastou-se a cavalo para o povoado central. Moose John ergueu a sua lança, adornada com um penacho de penas negras, a cor da guerra, e agitou-a.

Iniciou-se imediatamente a marcha para o vale. O nevão tinha terminado, mas o céu continuava escuro e começara a soprar um vento norte, extremamente frio. Os «arapahos» eram várias centenas. Uma vez na planície juntaram-se em filas muito nutridas e puseram os cavalos ao passo mais vivo que a neve permitia. Sabiam muito bem para onde se dirigiam.

Os exploradores tinham-nos precedido e, de vez em quando, um deles surgia no horizonte, agitando a sua lança e a impressionante massa de índios retificava a sua marcha.

Moose John tinha uma expressão grave. As mulheres tinham ficado no povoado, preparando os cadáveres para a cerimónia final. O cadáver do seu único filho estava entre eles. Moose John lutara muito com o seu povo para o convencer de que deveria aceitar a convivência dos brancos, e os brancos tinham assassinado pelas costas o seu único filho.

— Será o princípio de uma guerra, enviarão soldados do forte e as violências suceder-se-ão; no fim, todos os «arapahos» serão eliminados. Mas não devemos deixar de vingar a crueldade desses homens.

Outros exploradores índios saíram-lhes ao encontro. Finalmente, um colocou-se junto de Moose John.

— Estão no mesmo lugar, chefe. Farão saltar a terra sob os nossos pés, com o seu fogo?

Moose John não respondeu à pergunta. Ordenou aos seus homens que se separassem. Os índios desdobraram-se em grupos compactos. Sempre em silêncio. Os exploradores iam à frente.

Finalmente detiveram-se cavalo contra cavalo, formando um enorme círculo à beira de uma profunda depressão, ao fundo da qual ardiam algumas fogueiras e se reuniam pouco mais de três dezenas de pessoas.

 

ARZ161.10 Um guia para os fugitivos traiçoeiros

— Moose Red. O filho do chefe...

Roscher «Montara» tinha virado um dos cadáveres estendidos sobre o gelo. Era o do filho do chefe «arapaho». Depois comprovou que nada podia fazer-se por nenhum dos outros.

— Perfuraram o gelo. Isto quer dizer que era o grupo encarregado de devolver o ouro ao seu lugar de origem. E também que os assassinos levaram o ouro. Os pacíficos «quáqueres»! E um deles era o homem que estava destinado à Deborah!

Examinou os arredores. Quando Moose John descobrisse o assassínio do filho, o Lemhi Range ia pôr-se ao rubro. «E esses infelizes sem armas, meio gelados, que me esperam...».

Tinha deixado o «Patriarca» e a sua gente abrigados numa depressão de terreno. Um local bom para suportar melhor o frio, e também ideal para receber um ataque dos «arapahos», que os encontrariam facilmente. «Devo voltar para junto deles... ainda que... de que valem dois revólveres? São centenas de arcos e lanças. A única esperança para os «quáqueres», para Deborah, está em que eu encontre os assassinos antes que o Moose John encontre estes cadáveres».

Roscher voltou para o seu cavalo. O tempo estava a piorar e ao entardecer chegaria uma tempestade; e as tempestades eram terríveis no Lemhi, naquela época do ano. «Esses homens não puderam carregar os sacos. Levaram os cavalos dos índios, mas não poderão montá-los. Não chegam para todos».

Verificou os poucos víveres de que dispunha. Subiu para a sela e dispôs-se a perseguir os assassinos, cujo rasto tinha sido completamente apagado pelo vento.

 *

 Os quinze fugitivos bebiam ansiosamente um pouco de café quente, quase a ferver. Tinham-se atrevido a acender uma fogueira para preparar o café, num buraco, e enquanto a água fervia dois homens dispersavam o fumo, agitando ramos. Enquanto bebiam o café e um pouco de carne seca, tinham os sentidos alerta, especialmente o ouvido.

— Vão perseguir-nos, Jonathan! E a ideia de sair do Lemhi pelo Oeste é uma fantasia! Não fazemos ideia de onde haverá uma passagem! Vamos morrer de frio enquanto a procuramos; ou de fome, que já quase não temos comida!

Jonathan ocupava-se a colocar montes de ramos sobre as barras que os cavalos arrastavam, para evitar que se enterrassem na neve, deixando um rasto que permanecia muito tempo.

— O que tiver medo pode voltar para o Este. A passagem para Butte conhecemo-la todos. Mas sem levar o ouro. No Forte seríamos enforcados pela morte dos índios.

Cobriram a fogueira com neve e meteram as suas coisas nos alforges, que primeiro tinham transportado aos ombros, mas que carregavam os cavalos agora. E voltaram a caminhar puxando os animais, que não comiam havia muito tempo, já que a pastagem estava coberta pela neve. Os cavalos perdiam as forças rapidamente; viajantes mais experientes teriam notado esse perigo, mas os «quáqueres» não eram experientes e tinham medo. Por isso puxavam sem descanso pelos pobres animais.

Na planície, a ventania era mais intensa, Jonathan animava e ameaçava os seus companheiros. Por fim, a noite terminou com o suplício. Tiveram de deter-se. Atiraram-se para o solo junto de um talude, amontoados uns sobre os outros, e envolveram-se nas mantas. Jonathan nem pensou em procurar comida para os animais.

Ao amanhecer despertaram aterrados. Quase não podiam pôr-se de pé. Mas conseguiram retomar a marcha. Jonathan dizia aos outros que estavam perto do limite Oeste do Lemhi.

— Do outro lado dessas montanhas acaba o perigo dos «arapahos»! Seremos livres e ricos. Poderemos comprar carroções, bons cavalos, víveres e continuar para a costa.

Era exato, em parte. E em breve o verificaram. Porque as montanhas eram altas e sem caminho algum entre elas. A neve tinha-os fechado todos.

— Tem de haver uma passagem! — rugia Jonathan. — Tem de haver!

— Mas nós não a conhecemos! Ficámos apanhados no fundo deste enorme saco! Por isso os índios não nos atacaram. Estavam à espera de que nos metêssemos aqui, para acabarem connosco sem o mínimo perigo.

— Encontraremos a passagem! Não nos deterão estas malditas montanhas!

Um dos homens voltou-se subitamente, gritando:

— Aí estão! Disparou o seu revólver, loucamente.

Jonathan caiu sobre ele, desarmando-o com um murro.

—Imbecil! Assustou-te o movimento de um arbusto! E o teu tiro deve ter sido ouvido muito longe!

Os quinze homens, a quem o cansaço tornava mais irritáveis, começaram a discutir. O que disparara o revólver quis bater em Jonathan; houve momentos de grande confusão.

O «Patriarca» ter-se-ia assustado ante a violência contida daqueles homens, que tinham sido pacíficos, durante muito tempo, pelo menos aparentemente. Por fim, Jonathan conseguiu dominá-los.

—Basta! Querem morrer todos atravessados pelas setas dos índios? Pode ser que este tiro nos ajude! Calma!

O som do tiro atravessou metade do Lemhi Range. Depois foi absorvido pelo ruído da tempestade. Não chegou até ao ponto onde os «quáqueres» esperavam, nem à montanha dos «arapahos», mas Roscher «Montana» ouviu-o. «Tentam fugir por Oeste. Estão loucos! Podem ter disparado contra uma lebre, ou talvez já estejam a matar-se uns aos outros.»

Não era possível ao seu cavalo galopar sobre a neve. «Montana» tinha dormido no fundo de uma cova, ao calor do animal, como faziam os índios. E gastara mais de meia hora a afastar neve para procurar pasto para o seu companheiro.

Quando ouviu o tiro já a manhã ia adiantada e o seu temor aumentou. «O Moose John enviará os seus homens para aniquilarem os colonos logo que souber que o filho morreu. Pode ser que até já tenha acontecido, enquanto eu procuro os assassinos...»

O tiro fê-lo compreender que não estava longe dos quinze fugitivos. Desviou o cavalo, subindo por uma encosta. E ao chegar a certa altura viu-os. Avançavam com esforço, quase arrastando os seus cansados cavalos por entre as rochas. Contou-os. Sabia que estavam armados e que não se importavam de matar.

Voltando a descer, Roscher iniciou um rodeio que deveria colocá-lo à frente dos «quáqueres». Tinha cessado de nevar. Empunhou um revólver, comprovando que o tambor estava carregado. O seu cavalo não provocava o menor ruído. Desmontou junto de um montículo.

Minutos depois ouvia o arquejar dos homens e dos cavalos. Empunhou o segundo revólver, armando os dois. Apareceu no caminho quando o grupo de homens e animais ia passar sob o montículo. Disse, com voz forte:

— Quietos! Não toquem nas vossas armas! Detenham os cavalos!

Os «quáqueres» obedeceram. Roscher observava-os, tentando contá-los. Antes que o terminasse, disseram atrás dele:

— Falta um, sim, senhor «Montana»! Não foi muito esperto, para um homem da sua experiência. Nós, pobres homens do campo, conseguimos surpreendê-lo. Deixe cair os seus revólveres, senhor «Montana». Não sou um especialista, mas à distância a que se encontra acertar-lhe-ei no coração.

«Montana» deixou cair as armas, que se cravaram na neve. Jonathan aproximou-se, mantendo-se sempre a certa distância. Roscher olhava-o fixamente.

— Você... o prometido da Deborah. Abandonou-a! Todos vocês abandonaram as vossas famílias e amigos. Sabem o que é que os índios farão, com eles quando descobrirem os cadáveres que vocês deixaram sobre o gelo? Um daqueles homens era o filho do chefe. As vossas famílias e os vossos amigos vão ser aniquilados, Jonathan! Matarão a Deborah! Isso não lhe importa?

Jonathan sorriu.

— Pelo menos, assim não ficará para si, «Montana». Perdemo-la os dois. E eu poderei esquecer o passado, incluindo a recordação da Deborah.

«Montana» voltou a cabeça, olhando para os outros homens, que arquejavam esgotados, junto dos cavalos índios.

— Vocês pensam do mesmo modo? Vão abandonar definitivamente os vossos por esse pó dourado? Não se importam que os matem?

Jonathan gritou, agitando o seu revólver:

—Não perca tempo, «Montana»! Além disso, já não podemos retroceder! Matámos os índios por causa desse ouro, e agora não só defendemos a nossa riqueza como defendemos também a nossa vida! Só estaremos a salvo do outro lado da montanha!

Roscher respondeu, calmamente:

— Nunca conseguirão passar para o outro lado nesta época. Os «arapahos» encontrá-los-ão muito antes. Dispare de uma vez, Jonathan! Você lançou estes homens nesta aventura suicida porque perdeu a Deborah! Eu tirei-lha, ela ama-me a mim! Dispare de uma vez!

Jonathan apertou os lábios. A sua arma moveu-se um pouco, adiantando-se para «Montana». Mas não disparou. Em vez disso, pós-se a rir.

— Não vou disparar, amigo. Se alguém pode encontrar uma passagem entre essas montanhas, esse alguém é você, o melhor guia de Butte. Quando vi que nos seguia, compreendi a nossa sorte. Você vai guiar-nos.

«Montana» negou, resolutamente:

— Nem pense nisso.

— Sim, vai guiar-nos. Entre outras razões, porque é o único modo de salvar a vida.

— Não se iluda. Não disparará contra mim enquanto esperar conseguir convencer-me.

— Claro, «Montana». Mas os «arapahos» não sabem quem fazia parte do grupo que aniquilou os seus e quem não fazia. Matar-nos-ão a todos quando nos alcançarem. E a si também, amigo. Seria inútil dizer-lhes que é bom rapaz, que não pertence ao nosso grupo, que o ouro o deixa doente, que o despreza... Matar-nos-ão a todos. De modo que uniu-se agora ao nosso grupo e terá de salvar-nos a todos se quiser salvar-se a si mesmo.

Roscher fechou os olhos. Eram quinze homens armados e vigilantes. Também esgotados e assustados... Aceitariam facilmente que ele quisesse salvar a sua vida com a mesma ânsia que sentiam.

— Quem me garante que, quando chegarmos ao outro lado, vocês não me matarão? — perguntou, como hesitando.

— Ninguém, «Montana». Esse é o risco que corre. Tudo depende da lealdade com que nos ajudar — disse Jonathan.

«Montana» apontava para os seus revólveres. Jonathan negou.

— Não precisa deles para encontrar o caminho. Nós dispararemos, se for preciso. Retroceda um pouco.

Roscher obedeceu e Jonathan apanhou-os, com ar de admiração.

— Eu tratarei deles... Agora trate de orientar-se, «Montana». Não temos muito tempo. Diga-nos qual é o caminho...

 

ARZ161.09 A traição surge no seio dos fanáticos

Uma dor aguda, muito viva, que lhe percorria todo o corpo como se lhe cravassem milhares de pequenas agulhas, acordou Roscher «Montana». Com os olhos ainda fechados, recebeu uma sensação intensa.

— Calor! Está calor!

Através das pálpebras viu um brilho avermelhado. Levantou-as por fim, e as chamas deslumbraram-no. Calor! E aquela dor era provocada pelo seu sangue, circulando de novo, velozmente. Muito calor!

Uma voz disse:

— Afastem-nos, que vão queimá-los. É demasiado fogo.

«Montana» moveu os lábios. Conseguiu emitir um som.

— Deborah?

Uma voz de mulher respondeu-lhe:

— Está bem, filho... Vive, como tu.

— Não viverão se não os afastarmos do fogo — disse outra voz. — Devem aquecer-se pouco a pouco.

A voz dura do «Patriarca» dos «quáqueres» escutou-se de novo:

— Dêem-lhes um pouco de bebida.

Roscher «Montana» respirava com ânsia. Quando conseguiu novamente abrir os olhos viu Deborah estendida a seu lado; pegou numa das mãos da rapariga; ninguém lho impediu. O «Patriarca» e outros homens atendiam ao fogo; as mulheres cuidavam de Roscher e de Deborah; cobriam-nos com mantas, davam-lhes bebidas quentes...

Ia a manhã em meio quando Roscher conseguiu sentar-se e sorrir a Deborah, envolta em mantas, e feliz, cuidada pelos pais. «Montana» olhou para o chefe dos «quáqueres».

— Que o fez voltar? Não estava seguro da sua justiça, chefe?

O velho assentiu:

— Sim, estava... Somos um povo justo, servimos uma Lei justa. Mas... esta noite sucedeu algo que me fez duvidar. Talvez eu não tenha o direito de ser intérprete da Justiça. Nós, os «quáqueres», servimos rigidamente uma moral... Pensava que nada poderia desviar-nos dela. A Deborah tinha pecado e devia ser castigada... Mas esta noite...

 —Que sucedeu esta noite?

O «Patriarca» abanou a cabeça, abatido.

— Aquela sua história, «Montana» ... Aqueles sacos de ouro que os índios vão devolver à Natureza... Não voltámos todos a este lugar, rapaz. Faltam quinze dos nossos, quinze homens honrados, justos, que obedeciam às minhas ordens, que os amarraram às árvores temerosos de Deus e que odiavam a violência. Faltam quinze dos meus homens. Separaram-se de nós. Tinham armas escondidas entre as roupas, sem que eu o soubesse; sempre as tinham tido; abandonaram as mulheres e os filhos, faltaram a todas as suas promessas, riram-se de mim. Quinze homens que eu julgava livres da ambição de fortuna e do demónio da violência. E foram procurar os índios para lhes arrebatarem o seu ouro! Por isso, rapaz, compreendi que não tinha o direito de o condenar a si e à Deborah. Foi tudo um fracasso. O ouro descobriu as verdadeiras personalidades desses quinze homens, descobriu as armas que escondiam. Por pouco não nos mataram a todos. Depois foram para matar os índios, para derramar sangue por dinheiro. Voltei rezando para vos encontrar com vida. O meu povo já não existe. Esses cederam por ambição de riquezas; ela, a Deborah, por amor; outros fá-lo-ão por ódio, ou por desejo de mandar...

Roscher «Montana» disse:

— Foi demasiado otimista, demasiado simples. Os homens não são melhores nem piores que os outros. Em cada grupo encontra-se de tudo, seja qual for a sua raça ou o seu credo. E é preciso ser tolerante para com os outros, «Patriarca».

—Não para com esses assassinos! Eu trouxe-os ao Lemhi! Os «arapahos» cediam-nos as suas terras, aceitavam-nos como vizinhos, e esses quinze homens vão matá-los e roubá-los!

Roscher pôs-se de pé, para comprovar que as pernas lhe obedeciam. Deborah estava resplandecente de felicidade. O pai parecia envergonhado da sua emoção. A mãe da jovem não deixava de rir e beijar a filha. «Montana» inclinou-se para a jovem.

— Senhora, quero avisá-la de que a sua filha e eu voltaremos a Butte, onde tenho o meu trabalho. Casar-nos-emos no forte. Lamento pelo homem que esperava casar com ela.

A mãe de Deborah respondeu, lentamente:

— Esse homem é um dos que nos abandonaram, senhor Roscher. Sei que fará feliz a minha filha, ainda que não seja «quáquer». Têm os dois a minha bênção.

O pai não dizia nada.

Roscher beijou a jovem com suavidade; ela corou, olhando assustada para os pais. A severidade dos «quáqueres» estava a desmoronar-se

O chefe, no entanto, tinha algo a dizer. Pôs uma mão sobre um ombro de «Montana».

— Rapaz. Sei que não temos o mínimo direito sobre si, mas você é o único que pode guiar-nos no Lemhi. Peço-lhe por nós, trata-se de evitar muitas mortes. É preciso impedir que esses quinze infelizes encontrem os índios. É necessário detê-los.

— Com os meus dois revólveres, chefe?

«O Patriarca» fez um gesto de desalento.

— Confio em que não disparem contra nós, que não cheguem a tanto.

— Chefe, se esses homens decidiram esquecer tudo incluso as famílias, para conseguirem o ouro, dispararão. E fá-lo-ão quase com gosto, para não deixarem testemunhas da sua canalhice.

O «Patriarca» murmurou, resignado:

— Então leve a Deborah e que tenham muita sorte. Nós procuraremos esses criminosos. É o nosso dever. Fui eu quem os trouxe a esta terra, não posso permitir que a cubram de sangue. — Você é duro, chefe, inflexível, mas não há dúvida de que é leal consigo mesmo. Tentarei ajudá-lo. Entre outras razões por que os «arapahos» são boa gente e nunca se sabe até onde pode chegar uma guerra com os índios.

 *

 O grupo de homens avançava, lutando contra a neve e o vento. Tinham as botas envoltas em pedaços de mantas, apoiavam-se a ramos. Iam muito juntos, para se defenderem da ventania, e de vez em quando detinham-se, falando aos gritos, discutindo com violência, fazendo recriminações uns aos outros.

—É inútil! Estamos a dar voltas no mesmo sítio! É a segunda vez que passamos em frente desse monte. Quem foi o imbecil que pensou que poderíamos encontrar os índios? Devem estar a vigiar-nos e acabarão connosco quando quiserem!

— E essa história do ouro! Talvez fosse invenção do rapaz, para que o deixássemos em paz!

Um dos homens apontou, para longe:

— Aquilo ali parece uma choça!

— É um monte de mato!

— Estaria coberto de neve! É uma choça que teve calor até há pouco tempo!

Retomaram a marcha mais animadamente. Algumas armas, antiquadas, mas em bom estado, apareceram nas suas mãos. Detiveram-se todos perto da choça, observando-a em silêncio.

— Não sai fumo, está abandonada. Não há pegadas em torno dela.

— As pegadas desaparecem num minuto, com este vento. Muito cuidado.

Entraram finalmente na choça. Com efeito, estava vazia. Havia restos de uma fogueira, já frios. Os homens revistaram tudo. Um deles murmurou, excitado:

— Eh! Olhem aqui!

Tinha levantado uns ramos. Na semi escuridão da choça, algo brilhava no solo. Partículas douradas. Fez-se silêncio, até que alguém disse:

— É ouro... O solo está pisado, como se tivesse suportado um grande peso.

— Os sacos de que falou o guia. Estiveram aqui! Era verdade, os índios levaram-no já para as montanhas!  O ouro existe! E vão atirá-lo para os arroios!

Os quinze homens estavam pálidos, Tinham deixada de notar o frio. Alguns sorriam. Outros praguejavam.

— Já deve ser tarde! Não sabemos onde esses selvagens têm o seu acampamento!

Acenderam uma fogueira, enquanto discutiam como deviam agir.

— Bastaria apanharmos um desses índios. Obrigá-lo-íamos a guiar-nos. Segundo parece, são muito pacíficos e devem ignorar o valor do ouro.

Saíram da choça. Olharam para a grande montanha que fechava o Lemhi pelo Norte. Um deles pôs-se a rir.

— Aquilo ali não é fumo? E ali, não é fumo também?

— Claro, os índios também precisam de acender fogueiras para se protegerem do frio! Estão ali!

Um, mais realista, avisou:

— A muitas léguas de distância. E há várias centenas deles nessa montanha.

Mas a recordação das partículas douradas que tinham visto na choça voltou a inflamá-los. Nem sequer quiseram perder tempo para comerem qualquer coisa. Retomaram o caminho da montanha, guiados pelo fumo das fogueiras dos «arapahos».

*

Era como se uma força misteriosa impulsionasse aqueles quinze homens inexperientes, uma força que os fazia resistir ao frio, ao vento, que os fazia levantarem-se rapidamente quando caiam.

De vez em quando, o mais forte deles, Jonathan, gritava-lhes:

— Rápido, não se detenham ou só chegaremos quando o ouro estiver na água!

Os homens trepavam pelos penhascos, ferindo-se nas mãos quase geladas. Escorregavam e praguejavam. Não se pareciam em nada com os homens que pouco tempo antes seguiam silenciosamente o «Patriarca», A sua verdadeira personalidade estalara violentamente ao brilho do ouro.

O desalento começava a apoderar-se de todos, antes da fadiga, quando um deles assinalou algo no solo. Duas marcas profundas que rasgavam a neve, passando em frente deles.

— Que é isto? As rodas de um carroção?

Jonathan negou.

— Não, nenhum carro pode passar por aqui. São marcas deixadas por essas espécies de macas que os índios usam para o transporte. Duas varas arrastadas por um cavalo. Eles ainda não usam a roda! E passou por aqui há muito pouco tempo. Ainda não foram cobertas pela neve!

Os quinze homens voltaram a ganhar esperança. Jonathan dividiu-os em dois grupos, pois não sabia de que direção viera o cavalo que arrastara a carga. Mas averiguaram-no pouco depois.

Para a direita ouviram pancadas compassadas, violentas. Os «quáqueres» reagruparam-se e com o maior cuidado dirigiram-se para o local de onde vinham os ruídos.

Jonathan, decididamente convertido em chefe do grupo, indicava-lhes os movimentos a efetuar. Foram avançando com muito cuidado, cobrindo-se sempre com pedras e arbustos. E por fim viram de onde procediam os ruídos: Vários cavalos, com as suas cargas, estavam perto de um rio completamente gelado. Oito índios afadigavam-se em quebrar o espesso gelo. Usavam machados de pedra e mocas e o trabalho era difícil.

Jonathan olhou para os fardos que os cavalos levavam sobre as macas e crispou as mãos.

— O ouro! Vão atirá-lo ao rio!

Voltou a cabeça, olhando para os seus homens. Tinha na mão um revólver. Agitou-o e os restantes «quáqueres» imitaram-no. Todas as armas eram curtas; os que estavam mais longe do rio arrastaram-se sobre a neve, para se aproximarem. O barulho que os «arapahos» faziam batendo no gelo facilitava o avanço dos seus inimigos.

Por fim, Jonathan julgou chegado o momento. Disse ao homem que estava mais perto dele:

—Ë preciso matá-los a todos. De contrário seguir-nos-iam.

O homem que recebeu a ordem transmitiu-a a outro. Nenhum deles se alterou. O «Patriarca» teria ficado assombrado, se pudesse observar aquela mudança em quinze homens que julgava justos e honrados.

Jonathan apontou cuidadosamente a sua velha arma ao mais alto dos «arapahos» e, com o mesmo cuidado, apertou o gatilho. O índio tombou sobre o gelo, largando o seu machado. Os outros começaram a voltar-se, surpreendidos, quando de vários pontos choveram sobre eles novos projéteis. O tiroteio foi curto, mas intenso. Os oito habitantes da montanha ficaram estendidos sobre o gelo, que começou a manchar-se de sangue.

Os «quáqueres» correram para eles. Só três se deram ao incómodo de verificar se algum vivia. Os outros rodearam os cavalos.

Jonathan pôs-se de joelhos sobre a neve, desamarrando a fita de couro que fechava um dos fardos. A sua impaciência tornava mais desajeitadas as suas geladas mãos. Por fim, conseguiu meter uma delas num fardo e tirar um punhado de areia dourada, entre a qual havia algumas pepitas de bom tamanho. Olhou para os seus companheiros, rindo nervosamente. Depois fechou o saco, levantou-se e colocou-o sobre o cavalo.

— Estão mortos? — perguntou.

— Sim, os oito. Parece que não fizemos nada mal, apesar da pouca prática.

Jonathan voltou a rir. Mas olhava com inquietação à sua volta.

— Os tiros devem ter sido ouvidos em toda a montanha e pode ser que haja mais índios pelas redondezas. Temos de fugir quanto antes e levar o ouro.

Os quinze homens apagaram os seus sorrisos; o pânico apoderava-se deles. Jonathan agarrou um dos cavalos pela rédea de couro e, sem esperar mais, afastou-se com ele em direção à planície. Os outros seguiram-no. Alguns incitavam os animais, batendo-lhes nas garupas.

— Depressa! Depressa!

— Quando chegarmos à planície, iremos para Oeste — disse Jonathan.

— Depressa! Depressa!

 

 

ARZ161.08 O fanatismo leva a entregar dois jovens aos desígnios da Providência cercados de gelo e lobos

Sem dúvida a Jovem Deborah tinha recebido uma dura educação, Entre os seus não havia excessivos sentimentalismos; aceitavam-se as disposições do destino com o maior estoicismo, Ela aceitou a morte dos pais e de todos os seus companheiros, limitando-se a voltar as costas a «Montana» para rezar. Depois, Roscher viu lágrimas nos olhos da bela «quáquer». Era um choro doce e resignado.

— Eles chegaram já à sua terra prometida — disse.

Roscher tinha decidido tentar o regresso ao Forte Butte. Os «arapahos» deram-lhes cavalos e viveres e escoltaram-nos até às montanhas. Uma vez aí «Montana» disse ao chefe John Moose que poderiam seguir sozinhos. Os «arapahos» despediram-se com poucas palavras, regressando aos seus povoados.

«Montana» e Deborah começaram a internar-se na passagem, onde a neve era muita, Nenhum carroção conseguiria seguir por ali, mas os cavalos índios, com os seus cascos largos e peludos, avançavam com relativa facilidade.

Cavalgaram até ao entardecer. «Montana» procurava um lugar para acampar, e quando o encontrou desmontaram.

— Vou procurar lenha sob a neve, Fique você sob essa rocha, Junto do calor dos cavalos.

Deborah disse:

— Eu... prefiro ir consigo.

Apesar de todo o seu estoicismo, bem provado, era apenas uma jovem que tinha medo da solidão. «Montana» sorriu, compreendendo.

— Bem, procuraremos lenha os dois juntos.

Deixaram os cavalos amarrados. Tinham passado por um bosque baixo. Removendo a neve apareciam arbustos quase secos. «Montana» cortava-os a golpe de faca, amontoando os ramos no solo.

Estavam os dois tão absorvidos no trabalho que não notaram a silenciosa chegada de curiosos. Em determinada altura «Montaria» levantou a cabeça, e a sua surpresa foi enorme. Os «quáqueres» que ele julgava soterrados sob toneladas de neve na encosta estavam ali, turvos, com gelo nas barbas. Iam-se aproximando. Com eles estavam as mulheres e as crianças. Saiam de entre o pequeno bosque. Deborah gritou, alvoroçada:

— Pai! Mãe! Estão vivos! Estão todos vivos, Roscher!

Roscher «Montana» deixou de sorrir, porque os pais de Deborah, que se encontravam no grupo mais próximo, não correspondiam à alegria da filha, porque se deu conta da gravidade daqueles rostos.

O «Patriarca» destacou-se dos outros. Parecia envelhecido; a fadiga tinha-o vencido.

— Por fim encontramos os dois pobres pecadores. Tantas horas de caminhar. Mas era forçoso que os nossos caminhos se cruzassem. Roscher «Montana», você encheu de vergonha o nosso povo. Sempre desconfiámos de si. Perdeu uma pobre criança inocente, fazendo-a esquecer os seus compromissos...

Roscher ficou furioso ao ouvi-lo:

— Não seja tolo e deixe essa linguagem de melodrama! A Deborah e eu fomos feitos prisioneiros pelos índios e o nosso único pecado foi ter-nos deixado surpreender.

O «Patriarca» assentiu, com tristeza.

— E agora fugiam para Este, em vez de voltarem ao nosso acampamento na encosta.

Os «quáqueres» aproximavam-se mais. As mulheres tinham ficado para trás. «Montana» tentava acalmar-se. Aqueles fanáticos Irritavam-no.

— O vosso acampamento não existe! A Deborah e eu julgávamo-los mortos! Uma avalancha arrasou tudo. Perderam tudo, carroções e cavalos. Vocês salvaram-se por terem vindo à nossa procura. Escute, «Patriarca», contar-lhe-ei o que se passou!

— Conte, jovem. Todos têm o direito de se defenderem.

Roscher contou a história de O'Donell, do seu ouro, dos «arapahos» acobardados, da morte de O'Donell e dos dois guias. Os «quáqueres» escutavam-no sem mostrarem demasiado interesse, nem sequer à menção da fabulosa fortuna que os índios tinham levado para a sua montanha.

— O chefe Moose John vai devolver o outro aos arroios. Diz que a eles pertence, que só tirarão o que for preciso para os seus adornos, do mesmo modo que só matam a caça de que precisam para comer. Agora felicitem-se por terem salvo as vossas vidas, ainda que tenham perdido tudo o mais. E tentemos organizar o regresso a Butte, ainda que vá ser muito difícil. Não poderão instalar-se no Lemhi antes da Primavera e será preciso que as autoridades voltem a negociar com os «arapahos».

A mãe de Deborah era a única que de soslaio lançava olhares comovidos à filha. Deborah tinha voltado à sua passividade resignada, olhando para o solo sem dizer nada.

— Nós não regressaremos, jovem -- disse o «Patriarca». — Você diz que salvámos as nossas vidas por sorte. Não é assim, as nossas vidas estão traçadas. Salvámo-las para que pudéssemos cumprir o nosso dever de perseguir esta pecadora e o homem diabólico que a perdeu. Nós continuaremos a nossa viagem...

— Morrerão antes que consigam construir cabanas! O Inverno ainda nem começou!

— Morrerão os mais fracos de entre nós, e os que restarem construirão uma cidade. Nós nunca nos detemos. E a sua história pode ser verdadeira, menos num princípio. Você veio connosco com a intenção de enganar a Deborah. Só por isso, com o desejo de a subtrair à nossa autoridade e ao seu destino.

Roscher «Montana» gritou, furioso:

— Sim, claro que sim! Vim porque a amo, porque queria casar-me com ela! Mas não queria enganá-la, e quanto à vossa autoridade, ninguém tem autoridade sobre a Deborah. É um ser livre e pode decidir da sua vida como lhe parecer!

O «Patriarca» fez um gesto de pena.

— Compreendo. E aceito-o como uma confissão de culpa. Nós não praticamos a violência, você sabe-o. Mas toda a culpa tem um castigo. Vocês serão castigados...

Ergueu uma mão. Roscher tocou no seu revólver. Mas não podia disparar contra aquela gente desarmada, contra aqueles loucos. Quis afastá-los, mas eram demasiados. Não batiam, limitaram-se a imobilizá-lo, agarrando-o com força. Depois de uns instantes de luta, Roscher ficou quieto.

— Como pensa castigar-nos, «Patriarca»? — perguntou, furioso.

— O destino decidi-lo-á. Você e a Deborah ficarão aqui, amarrados a estas árvores, e o destino decidirá...

— Sabe muito bem que o destino nos matará em poucas horas! É a isto que chama não ser violento? Isto é assassínio! Não se atrevam a fazer o mesmo à Deborah! Você foi o culpado de tudo ao enviar uma rapariga sozinha procurar água num território selvagem, você...

«Montana» foi empurrado para uma das árvores e os «quáqueres», que não sabiam usar armas, mas sabiam fazer nós, amarraram-no com tremenda força, imobilizando-o por completo. Amarraram depois as cordas aos ramos baixos, para que Roscher não pudesse deslizar-se para o solo. Tiraram-lhe as armas todas, incluindo a faca. Roscher tinha deixado de gritar insultos; era demasiado orgulhoso para suplicar.

Deborah continuava imóvel. O «Patriarca» indicou-lhe outra árvore e ela foi colocar-se encostada ao tronco. Começaram a amarrá-la, com a mesma violência. Então Rocher gritou à mãe da rapariga:

— Senhora, é sua filha! Não o consinta! Vai morrer e está inocente! Está inocente...

Deborah voltou a cabeça. Tinha os olhos húmidos, mas sorria.

— Não o sou, Roscher... Sou culpada, porque te amo, porque estava disposta a fugir contigo. Devo ser castigada por isso, por faltar às ordens do «Patriarca». Sou culpada...

A mãe de Deborah começou a soluçar. O marido afastou-a dali. Outras mulheres, vestidas de negro com toucas brancas, rodearam-na. O «Patriarca» disse:

— Se não fomos justos para com vocês, a Providência salvá-los-á. Mas julgamos agir com justiça, A nossa consciência está tranquila.

Voltou-lhes costas e todos o seguiram. A comitiva de enlutados «quáqueres» afastou-se sobre a branca neve e desapareceu na escuridão,

Não nevava. Tinha cessado o vento, mas a cada minuto que passava a temperatura ia ficando mais baixa. A imobilidade naquele clima era mortal, Roscher sabia muito bem. Era de Montana, onde os Invernos são muito rigorosos. Tentou libertar-se das cordas, mas em breve compreendeu que era inútil.

O frio entrava-lhe nas roupas, endurecia-lhe as sobrancelhas, esticava-lhe a pele da cara, tornando-a dolorosa. Era apenas uma questão de horas. O seu sangue ir-se-ia tornando cada vez mais espesso e acabariam por morrer.

— Deborah... pequena... devia ter-te defendido a tiro. Não imaginei que fossem capazes de te fazer isto, a que és uma dos seus...

— Meu Deus, virão os lobos!

— Os lobos não se atreverão a atacar-nos enquanto estivermos vivos. Matar-nos-á o frio. É terrível morrer: precisamente agora, quando sei que me amas, que estavas disposta a desafiar esse louco barbudo por mim...

A jovem chorava. «Montana» teve um acesso de raiva e só conseguiu cravar mais as cordas na carne. Compreendeu que a única coisa que podia fazer era distrair Deborah, tentar impedi-la de pensar no que os esperava. Começou a falar. A temperatura continuava a descer.

A madrugada ia ser terrivelmente fria. Uma calma absoluta rodeava-os... Deborah deixou de chorar.

— O frio... sinto-o cá dentro...

Uma hora mais tarde a jovem quase não respondia às palavras de «Montana». Ele disse, com um esforço:

— Agora está a passar o frio, não é verdade? Talvez nos salvemos ainda.

Mas o frio era muito mais intenso. A rapariga começava a perder a sensibilidade. Roscher quase chorava de raiva, de impotência. Fez novos esforços para soltar-se. Não sentia já a mordedura das cordas. Também ele ficava Insensível. De vez em quando chamava a jovem. Ela movia a cabeça, mas não respondia.

Roscher perdeu por completo a noção das coisas. Não soube quanto tempo esteve desmaiado. Já não sentia o frio. Envolvia-o um estado de letargia quase agradável.

— É o fim... Dentro em pouco o coração deter-se-á. Deborah! Pobre criança!

Fechou os olhos. Quando os voltou a abrir, julgou estar sonhando. Havia um pouco de luz, tudo parecia azulado. Com muito esforço conseguiu voltar a cabeça. Deborah estava inconsciente.

— Talvez morta, já!

Quis chamá-la, mas a voz não lhe saia da garganta. Começava a amanhecer, Era o momento de mais baixa temperatura. Roscher voltou a fechar os olhos. Antes de perder a consciência, ouviu um leve ruído. Pensou:

«Lobos!»