Os expedicionários, gelados, reuniam-se em torno da fogueira; uma mulher servia-lhes café, outra entregava a cada um, um pequeno pedaço de carne seca. Eram os últimos víveres.
«Montana», sentado junto do fogo, aceitou o pequeno pedaço
de carne e, empunhando uma grande faca de esfolar, começou a parti-la em
pedaços ainda menores, que dava às crianças. Enquanto o fazia, observava os que
o rodeavam. Queria que vissem a faca com a qual estivera a ponto de ser
assassinado nessa noite.
Só o «Patriarca» lhe disse:
— Não lhe conhecia essa faca, Roscher...
— Encontrei-a esta noite, em circunstâncias bastante
curiosas, chefe.
Não houve mais perguntas. Todos apertaram os pedaços de
manta com que embrulhavam as botas e prepararam-se para retomar a marcha. Ao
longe, cinco «arapahos» a cavalo vigiavam.
Apesar de a manhã ir avançada, quase não havia luz. Roscher
sabia o que aquilo significava: ia desencadear-se uma tempestade sobre o Lemhi.
«Esta pobre gente está já quase sem forças. Espero que consigam resistir...»
O vento soprava com força, vindo do Este, batendo-lhes nos
rostos, tornando mais difícil o avanço. Depois começou a neve, cegando-os,
impedindo-os de ver o caminho
— Roscher... vamos esgotar-nos nesta luta — disse o
«Patriarca», arquejando.
Roscher sabia-o. E também que precisavam de encontrar uma
rota mais abrigada, ou em breve os mais fracos do grupo começariam a cair.
— Diga-lhes que façam um alto, chefe. Vou ver se podemos
continuar por melhor sítio.
Os «quáqueres» detiveram-se, deixando-se cair sobre a neve.
Roscher afastou-se, deixando o seu cavalo, que era mais um estorvo naquelas
condições. Estava a trepar a uma elevação, para examinar os arredores, quando
voltou a escutar o ruído que o acordava na noite anterior: o som de passos
sobre a neve.
O jovem deteve-se, tocando nos seus revólveres. O som tinha
cessado. «Talvez fosse só o vento», pensou. Esperou uns minutos e continuou a
caminhar. Naquela altura o vento era terrível.
«Montana» compreendeu que não conseguiria explorar fosse o
que fosse e que os «quáqueres» morreriam se continuassem imóveis sob aquela
temperatura, pelo que resolveu regressar.
Voltou-se bruscamente e avançou um passo... e o ar agitou-se
atrás dele. Uma sombra escura roçou-o. «Montana», por instinto, deixou-se cair
de bruços sobre a neve e, voltando a cabeça, viu a enorme pedra que se tinha
enterrado atrás dele. E voltou a escutar o ruído dos passos, que agora se
afastavam a correr.
Roscher levantou-se rapidamente.
«É o amigo da faca».
A pedra fora empurrada de cima, mas Roscher não tentou
sequer chegar até esse ponto. O que fez foi correr para o ponto onde,
calculava, apareceria o homem que fugia.
Viu-o, fugazmente, lançar-se atrás de outras pedras. «Montana»,
inclinando-se para não oferecer resistência ao ar, rodeou as pedras,
cortando-lhe a passagem. Tinha a certeza de tê-lo conseguido. Sobre a neve não
se viam pegadas, o homem estava ali, sem dúvida, agachado entre as pedras.
Empunhando um revólver e armando o gatilho, começou a
procurar. Sabia que enfrentava um assassino com recursos; por isso agiu com
muito cuidado.
Estava no meio de uma clareira, quando ouviu leves passos às
suas costas. Não se voltou e caminhou lentamente para outras pedras. Depois
rodeou-as a correr. Viu um vulto escuro, agachado. Dois saltos mais e
colocou-se atrás dele, apoiando-lhe o cano do revólver nas costas.
— Levante-se, amigo. Duas tentativas de assassínio em poucas
horas é muita coisa.
A pessoa agachada voltou-se. Era Deborah, a bela «quáquer».
Olhava para Roscher com temor, tremendo, muito pálida.
— Oh, Roscher... Que medo passei. Vim atrás de ti para
acompanhar-te. Foi uma imprudência, perdi-me nesta escuridão. Julguei que
morria de frio...
Roscher afastou o revólver. Também ele estava muito pálido.
Quando ela se lhe lançou nos braços, deixou cair a arma ao solo.
— De modo que eras tu, Deborah... — murmurou.
Ela abraçava-o. Roscher levou-a para junto de uma pedra,
para que se sentasse. Deborah dizia:
— Não te zangues. Foi uma loucura, só queria acompanhar-te,
estar sozinha contigo algum tempo...
«Montana» perguntou:
— Por que quiseste matar-me, Deborah? Ontem à noite com a
faca, agora com a pedra...
Ela abriu muito os olhos.
— Matar-te? Há pouco falaste em assassínios! Eu não tentei
matar-te, Roscher! Eu amo-te!
Roscher olhava-a com tristeza.
— Sem dúvida amavas verdadeiramente o Jonathan e tens estado
a enganar-me, esperando o momento de vingar a sua morte. Sim, amavas o
Jonathan, e por isso tentaste...
Antes que Deborah pudesse falar fê-lo outra pessoa, com voz
apagada e rouca. Um homem que acabava de recolher da neve o revólver que
Roscher deixara cair. Um dos «quáqueres» do grupo, um homem em quem «Montana»
quase não tinha reparado até então.
— Não. Engana-se. Ela nunca o tinha amado. Desprezava-o. E
você matou-o. Por isso vou matá-los aos dois. Tinha pensado vingar-me dela mais
tarde, mas vou aproveitar a oportunidade.
Deborah sussurrou, assustada:
— É o irmão do Jonathan...
— Sim, sou o irmão do homem que tu desprezaste e que você
assassinou, Roscher. Ensinaram-me a perdoar e a amar os outros, mas desde que
chegámos a esta terra tudo mudou.
— O seu irmão foi o primeiro a mudar, amigo. Converteu-se
num assassino feroz. Não merece que você mate por ele. Morreu justamente,
asseguro-lhe. A Deborah nunca prometeu amá-lo e você sabe-o.
O irmão de Jonathan praguejou entre dentes. Numa coisa não
se enganava: aquela terra tinha mudado a mentalidade de muitos deles. Ia
disparar, estava a apertar o gatilho...
Um silvo, uma pancada seca. O homem largou a arma, com uma
expressão de assombro; depois começou a cair, para a frente, muito lentamente.
Quando ficou estendido sobre a neve, imóvel, das suas costas sobressaia a
escura e longa haste de uma lança. Uma lança com um penacho de penas negras.
Deborah escondeu o rosto no peito de «Montana». Da escuridão
surgiu um homem a cavalo. Era Moose John, o chefe dos «arapahos». Olhou
fixamente para o homem caído e depois para os dois jovens.
— Sigam o vosso caminho. Estão a perder muito tempo e o
prazo não será ampliado — disse.
— Obrigado, Moose John. Salvaste-nos as vidas.
Moose John sorriu muito levemente.
— Tu és o guia. Sem ti essa gente nunca sairá do Lemhi. E eu
prefiro que vão embora a ter de matá-los.
Fez retroceder o seu cavalo e desapareceu.
Já não restavam víveres nem café. Aliás, o café não teria
servido para nada, havia várias horas que não encontravam lenha para queimar,
estavam na zona mais plana de Lemhi. Só neve e pedras.
As pernas enterravam-se até aos joelhos enquanto caminhavam,
o frio tornava-se cada vez mais intenso. O vento derrubava por vezes os
infelizes «quáqueres».
Roscher «Montana» sabia a verdade. Iam morrer, nunca
chegariam à passagem, a tempestade era cada vez mais violenta. Com a noite
chegaria a morte para todos.
O chefe dos «quáqueres» também o sabia. Roscher notou-o no
modo como o olhava. Quando anoitecia, «Montana» fez uma última tentativa.
— Vamos deter-nos para aproveitar a pouca luz que resta.
Temos de encontrar uma depressão, uma cova, um pouco de lenha...
O «Patriarca» assentiu:
— Sim. De outro modo...
Mas já a capa de neve era tão espessa que nem podiam tentar
encontrar a vegetação. Cambaleando, todos tentavam. Era inútil. Além disso, não
podiam separar-se muito, pois corriam o perigo de perder-se. Foram voltando,
deixando-se cair no solo, uns junto dos outros.
As mulheres tentavam dar o calor dos seus corpos às
crianças, que choravam.
Roscher olhava para o céu. A tempestade ia piorar ainda
mais; com a madrugada a temperatura desceria brutalmente e seria o fim para
todos.
Embrulhando-se na sua manta, fez um supremo esforço. Partiu
com o seu cavalo, para procurar lenha.
Em determinado ponto, cavando com a faca que pertencera ao
irmão de Jonathan, descobriu umas moitas. –
— É inútil! Nunca arderão!
Pensando em Deborah, desesperava. E pensando nela voltou
para junto dos «quáqueres», que eram uma grande mancha escura sobre a neve.
Procurou a jovem. Estava tentando acalmar o choro de uma
criança. «Montana» despojou-se da manta e colocou-a sobre a jovem e a criança.
— Não, Roscher — protestou ela.
Ele sorriu e Deborah começou a chorar. Tinha compreendido
que não lhes restava esperança alguma.
Alguns rezavam. A neve ia-os cobrindo a todos; alguém propôs
que continuassem a caminhar, mas nenhum deles tinha forças sequer para se
manter de pé. Deborah e «Montana», muito juntos, davam calor à criança, que
parecia adormecida, mas que, na realidade, estava quase inconsciente.
A jovem, pouco depois, também fechou os olhos. A medida que
avançava a noite, o frio ia-se tornando mais intenso. Roscher sentia igualmente
um grande desejo de dormir. De fechar os olhos e dormir. E os olhos fechavam-se-lhe,
ainda que ele quisesse impedi-lo. Sobressaltado, fez um esforço para abri-los,
agitou a cabeça. Sabia que o sangue lhe gelava nas veias.
— Não! Não! — murmurou.
Conseguiu pôr-se de joelhos. Alguém se movia junto dele. Era
o chefe dos «quáqueres» que perguntava:
— Não ouve um ruído?
«Montana» pensava que delirava. Mas não, também ele o ouvia.
Chegavam cavalos, muitos cavalos.
— Os «arapahos». Decidiram acabar connosco antes do prazo.
Sabem que não conseguiremos sair do Lemhi...
As sombras dos cavalos concretizaram-se. Eram muitos. Depois
produziram-se outros ruídos. Os índios tinham desmontado e moviam-se em torno
dos «quáqueres».
Roscher «Montana» queria distinguir o que faziam, mas quase
não conseguia ver.
— Vão usar as facas — dizia o «Patriarca». — Vão degolar-nos
a todos. Não querem desperdiçar setas...
Repentinamente, produziu-lhe um esplendor avermelhado, que
desapareceu, para surgir de novo com maior intensidade, iluminando a neve.
Roscher murmurou:
— É fogo, chefe! É fogo! Estão a acender uma fogueira!
As chamas ergueram-se com força, alegres, tingindo de
vermelho os «quáqueres», que se agitavam, como despertando. Depois acendendo-se
outra enorme fogueira.
Roscher levantou-se, cambaleante, para voltar a cair.
Levantou-se de novo e avançou alguns passos. O calor chegava até ele em ondas.
Era uma bênção, Ia cair outra vez quando o agarraram. Dois «arapahos» tinham-no
segurado pelos braços. Um terceiro colocou-se diante dele. Era Moose John, que
disse:
— Fogo e lenha para mantê-los vivos. Trouxemos pele e
comida. Os meus homens trarão mais, quando esta se acabar...
O «Patriarca» tinha conseguido chegar também ali. Outros
colonos arrastavam-se, para se aproximarem do fogo. Era quase milagroso como o
calor lhes devolvia a vida, com que rapidez despertavam do seu letargo. As
crianças corriam para as fogueiras. O «Patriarca» murmurou:
—É um homem bondoso, chefe. Salvou-nos a vida a todos, não
esqueceremos. Logo que tivermos forças deixaremos o Lemhi. Tem a minha palavra.
Moose John negou:
— Os meus homens trarão mais ajuda até que a tempestade
passe e possam construir as vossas casas: passado o Inverno terão a vossa
própria comida e a vossa própria lenha. A comida que obtiverem da vossa terra,
a terra do Lemhi, que vos pertence... Foi para vocês uma terra amarga, pela
qual pagaram um alto preço. Não seria justo que não conseguissem o que com
tanto ardor procuraram.
Deborah tinha-se apoiado a «Montana» e todos os colonos se
recuperavam; alguns estavam a ajudar os «arapahos» a levantar tendas, os
«tupis», firmando bem as estacas e puxando com força as tiras de couro de
cavalo. Roscher disse:
— És o homem mais fantástico que já conheci, Moose John. O
mais bondoso, Homens do nosso grupo enganaram-te, ofenderam-te e feriram-te no
que mais amavas, e tu ainda nos demonstras a tua generosidade.
Moose olhou para ele com afeto.
— Tu o disseste: também há «arapahos» indignos do nosso
povo, também entre nós alguns se deixam enganar pela ambição, pela paixão, pelo
ódio. E não é justo que os outros paguem por eles. Creio que todos fomos suficientemente
provados; agora poderemos viver em paz. Moose John cumprirá o pacto com o
grande chefe de Butte: as terras planas são vossas...
Ergueu uma mão, num gesto de despedida. Os seus homens
retiravam-se para os cavalos. Os homens riam junto do fogo, as mulheres desamarravam
os sacos de víveres. Pouco tempo depois, não restava um índio na planície.
As tendas foram montadas, com as suas grossas peles. O
«Patriarca», Roscher e Deborah olhavam ainda para o ponto onde Moose John tinha
desaparecido. O primeiro disse, lentamente:
— A nossa terra... a terra do nosso povo. O chefe índio
disse bem: foi uma terra amarga, custou-nos muito caro, por isso tem agora mais
valor.
Roscher e Deborah aproximaram-se de uma das fogueiras. Com
as mãos enlaçadas, riam felizes. Estavam já a planear a sua futura casa, que
levantariam ali mesmo, junto ao rio.
— Quando chegar a Primavera, Roscher, quando florescerem os
jacintos na margem, teremos a casa, a terra... E o nosso primeiro filho
chamar-se-á Moose John. E sentir-se-á muito orgulhoso por usar o nome de um
grande homem!
FIM
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