A jovem ia retirar a tábua que cobria o poço, quando um homem se aproximou dela, tirando o chapéu e dizendo amavelmente:
— Não tire água desse poço, menina. Está estragada, atiraram
um animal morto lá para dentro.
A jovem «quáquer» pareceu atrapalhar-se. Era muito bela. A
touca emoldurava-lhe o rosto, destacando a perfeição das suas feições. Umas
madeixas douradas assomavam ousadamente.
— Oh, então... — murmurou.
O homem apontou para as barracas das cavalariças.
— Há outro poço atrás dessas barracas. A água de lá é boa.
A jovem agradeceu a indicação com um sorriso e dirigiu-se
para as barracas, com a celha sobre a anca. Ao dar a volta às barracas
deteve-se, pois não via poço algum. Só um espaço vazio, abandonado, com o solo
coberto de mato entre as traseiras das barracas e a paliçada exterior do forte.
Ia voltar-se quando o homem que lhe dera a indicação surgiu
atrás dela, sorrindo sujamente. E outro surgiu do outro lado, entre as duas das
barracas. Também sorria.
— Não se assuste, boneca. Depois poderá ir buscar água. O
poço é bom. Mas primeiro queremos comprovar se vocês, os «quáqueres», são tão
bons e doces como dizem. Se é verdade isso de não se defenderem quando os
atacam. E nós não queremos fazer-lhe mal, boneca, só ver até onde chega a sua
doçura e a sua resignação...
A jovem tinha retrocedido, até que bateu com as costas na
paliçada. A celha caiu-lhe ao solo. Olhava para os dois homens com espanto.
Viu-os aproximarem-se, sempre sorrindo.
Quatro sujas e ávidas mãos agarraram-na pela roupa, como
garras. Um dos homens recomendou:
— Não grites, pequena. Poderiam vir os teus companheiros e
alguém ficaria magoado. Vocês não querem que ninguém
se magoe, não é
verdade?
Ela não gritava. Tinha fechado os
olhos. Ia desmaiar. Quando as quatro mãos se dispunham
a agarrar a roupa, aproximaram-se passos apressados. Um dos homens voltou a
cabeça, dizendo apressadamente:
— Cuidado!
Ao mesmo tempo largava a jovem e levava as duas mãos aos
revólveres. Empunhou-os velozmente, mostrando grande prática. E disparou-os com
igual rapidez, enquanto o seu companheiro recorria também às armas.
O homem que chegava a correr deteve-se bruscamente, e como o
que disparara contara com o seu movimento, apontando um pouco mais para a
frente, as balas foram cravar-se na parede das cavalariças.
Enquanto se detinha, o recém-chegado movia a mão direita e
disparava um revólver de calibre médio. Uma só vez, e o projétil não se cravou
na madeira, mas sim no coração de um dos homens que atacara a jovem.
O outro disparava também, mas o seu inimigo fez outro movimento
surpreendente, deixando-se cair e disparando novamente antes de ficar de
joelhos.
A jovem «quáquer» viu tombar o segundo dos seus atacantes.
Então lançou um grito de espanto. O homem que a tinha defendido levantou-se.
Era jovem, magro, vestia-se como um caçador do Norte e cobria-se com um gorro
de peles. Tinha um rosto quase infantil, ainda que a dureza da sua expressão não fosse exatamente infantil.
— Menina, acalme-se... já
passou tudo. Vi como esses dois homens a seguiam e supus que...
Em torno deles começou a
juntar-se gente. Vários soldados, um oficial e um
grupo de «quáqueres», cujo acampamento estava próximo. Um deles era o «Patriarca»,
que se apressou a aproximar-se da rapariga e segurá-la protectoramente por um
braço. Depois olhou para os dois homens estendidos no solo.
— Violência, morte, sangue! Só o homem é inimigo do homem!
—Esses dois indivíduos atacaram a menina... Tive de
disparar, eles fizeram-no primeiro.
—Foi assim, Deborah?
A jovem assentiu. Não tinha forças para falar. O coronel
Morgan chegava nesse momento; um simples olhar contou-lhe o que acontecera. Um
oficial disse:
— Esses dois tipos... Ambos dispararam. Parece que o Roscher
teve de defender-se. Tinham trazido essa jovem para aqui, para a ofenderem...
— Bom. Terá de escrever uma informação a este respeito,
Roscher. Vocês, por favor, voltem ao acampamento — disse ao «Patriarca».
Os «quáqueres» rodeavam Deborah. O chefe deles disse
iradamente:
— Não queremos que ninguém derrame sangue, nem sequer para
defender uma das nossas mulheres! Este homem deveria ser castigado!
O coronel Morgan resmungou:
— Suponho que imagina o que esses dois tipos queriam da
pequena. O Roscher esteve a pontos de morrer para defendê-la. Não lhe parece
que merece o seu agradecimento?
— Não posso agradecer que alguém mate, nem sequer para
defender a Deborah! Nós não queremos que nos defendam com o uso das armas! A
vida humana é sagrada, ninguém pode dispor dela!
Morgan encolheu os ombros. Roscher, o jovem guia que
defendera Deborah, olhava para ela como deslumbrado. Ela, de cabeça baixa, só
olhava para ele de vez em quando, corando.
Os «quáqueres» afastaram-se, aparentemente muito irritados.
Uma mulher franzina, impecavelmente limpa, atrasou-se um pouco, murmurando a
Roscher:
— Sou mãe da Deborah, senhor... Muito obrigada pelo que fez.
Por favor, não diga ao «Patriarca» que lhe falei!
A mulher afastou-se a passo vivo e o grupo desapareceu.
O coronel Morgan olhava com desgosto para os cadáveres.
— Disparas muito bem, Roscher.
O jovem sorriu, como desculpando-se. Ensinou-mo a vida no
Norte, coronel. E estes homens não eram aprendizes.
— Claro que não. Mas podias ter-lhes atravessado as pernas e
não o coração. Quando um civil como tu mata alguém num forte, é preciso enviar
milhares de papéis para o Este.
Roscher murmurou:
— Se sou apenas um civil incómodo, abandonarei o forte. Mas
alguém terá de tomar conta dessa gente. Com o seu pacifismo estão à mercê de
todos os patifes. Estes quiseram ofender a pequena, outros quererão roubá-los.
Morgan respondeu, autoritário:
— Tu não sais daqui. E, quanto aos «quáqueres», esperarei um
par de semanas. Se esse imbecil do cartógrafo alto aparecer com o mapa, irão
sem ele.
— Alguém terá de guiá-los, coronel — disse Roscher. — A
passagem é muito difícil.
Morgan sorriu, compreendendo.
—E esse alguém poderias ser tu, não é verdade? Estás louco,
rapaz. Os «quáqueres» não consentem que ninguém que não seja um deles se
aproxime das suas mulheres. Se essa pequena te agrada, e compreendo-o,
esquece-te dela. Já deve ter escolhido marido entre o seu grupo. O «Patriarca»
escolhe-lhe marido e decide quando devem casar. Esquece essa jovem. É o melhor.
Roscher, a quem todos chamavam «Montana» por ser desse
Estado, insistiu:
— De todos os modos, deixe-me ir com eles, coronel. Apesar
de toda a sua secura, aprumo e segurança neles mesmos, são como crianças. Se no
Lemhi Range há dificuldades, como pensa que há devido à falta de notícias da
gente que para lá enviou, esse grupo estará indefeso. Bem sabe, quando lhes
batem oferecem a outra face...
— Sim — murmurou Morgan. — E o pior é que os outros, quando
alguém lhes oferece a outra face, tornam a bater e ainda com mais força. Sem
dúvida que era uma bênção para o forte que essa gente se vá embora, e se tu
fores com eles ainda melhor. Disparas demasiado bem, Roscher. Graças a isso
estás vivo, mas deixaste demasiados cadáveres atrás de ti.
Roscher «Montana» acentuou a sua expressão de inocência. O
coronel Morgan bateu-lhe nas costas, acrescentando:
— Reúne tudo o que encontrares a respeito do Lemhi Range.
Irás com eles, já que é preciso. Mas espero que o cartógrafo regresse antes de
vocês partirem, não gostaria muito de ficar sem ti para sempre, rapaz. Por uma temporada,
será um descanso. Mas prefiro que voltes.
— Tem um coração de ouro, coronel — disse Roscher.
O coronel carraspeou, afastando-se dignamente. Ninguém no
forte sabia que Roscher era filho do seu melhor amigo. O coronel Morgan
detestava os sentimentalismos.
Os colonos tinham de trabalhar duramente para os libertar.
Por vezes tinham de deter-se durante horas, para alargarem o caminho com pás e
picaretas.
A viagem da colónia «quáquer» para o Lemhi Range iniciava-se
sob maus auspícios. Um carroção partiu um eixo e foi preciso fazer um alto de
dois dias para que os ferreiros o arranjassem. Foi durante esse alto que o
«Patriarca» se aproximou de Roscher «Montana». Sentou-se junto dele. Roscher
enrolava um cigarro e ofereceu a bolsa de tabaco ao chefe dos «quáqueres».
— Nós não precisamos de nos aturdir com fumo para enfrentar
as dificuldades da vida, jovem. Quero dizer-lhe algo muito importante. Soube
que se ofereceu voluntariamente para nos guiar. Agradeço-lho muito. Mas... só
receberá de nós amizade e gratidão, nada mais. As nossas mulheres não se usam
como paga de nenhum serviço. E quanto à Deborah... já tem dono.
Roscher atirou ao solo o cigarro que acabava de enrolar.
— Vocês deixam-me louco! Imaginam que todos os que não
pertencem à vossa seita são malvados e ruins! Além disso, você não tem o
direito de dispor da vida de ninguém, nem sequer da Deborah!
O «Patriarca» levantou-se, sorrindo.
— Já o imaginava. Você pensa ter mais direitos que eu sobre
essa inocente rapariga, mas os pais dela decidiram que fosse eu a guiar os seus
passos e a planear a sua vida, e já o fiz. Nós obedecemos sempre aos nossos
maiores. A Deborah recebeu ordens de não falar consigo, de não olhar sequer
para si. E cumpri-las-á. E agora falemos de outra coisa. Quando chegaremos à
passagem Saddle?
— Sabê-lo-á quando lá estivermos — respondeu Roscher. — Eu
sou o guia e não aceito ordens de um velho déspota.
Roscher deixou de ver Deborah, que viajava sempre dentro de
um dos carroções. As outras mulheres caminhavam valentemente atrás dos
veículos, e empurravam quando era necessário.
Uma tarde, ao atravessarem um pequeno rio, um dos carroções
voltou-se aparatosamente, o toldo de lona rasgou-se e uma mulher foi lançada à
água. Roscher, que estava a meio do rio sobre o seu cavalo, apressou-se a
desmontar, segurando a mulher quando a água começava a arrastá-la. Era Deborah.
A jovem corou violentamente ao ver-se nos braços dele.
Roscher ficou como deslumbrado.
— Deborah... está bem?
Ela não respondeu. Várias mãos arrebataram-na dos braços
dele, outras afastaram o jovem, empurrando-o. Vários «quáqueres» olhavam para Roscher
com ira, especialmente um deles, forte, de barba negra e espessas sobrancelhas.
— Senhor Roscher, tinha-lhe dito que...! — gritou o
«Patriarca».
— Para serem tão pacíficos, têm muito maus modos, senhores.
A jovem ia afogar-se.
O homem da barba negra respondeu:
— Não volte a tocar na minha Deborah.
Roscher olhou para o homem que falava. Era então aquele o
dono de Deborah, o homem a quem a jovem estava destinada. Afastou-se deles,
voltando ao seu cavalo. Deborah tinha sido rodeada por várias mulheres. Mas
Roscher, enquanto cavalgava para a cabeça da caravana, só pensava no olhar da
jovem.
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