O pico Saddle erguia-se ante a impressionada caravana de «quáqueres». Roscher tinha-lhes dito:
— Do outro lado fica o vosso novo lar. A passagem sobe por
essa ladeira, por entre as rochas. Espero que consigamos atravessá-la antes que
comece a neve.
— O coronel Morgan disse que não nevaria antes de dois
meses.
— A julgar por como desce a temperatura, começará a nevar
muito em breve.
O «Patriarca» disse, com o seu habitual fanatismo:
— Precisamos de passar. Uma das nossas mulheres vai dar à
luz muito em breve, e um «quáquer» não pode nascer num caminho; tem de nascer
sobre a sua terra.
Roscher deu então ordem para continuarem. A caravana
avançava lentamente. Da ladeira do Saddle, um homem vigiava-a. Um homem
estendido sobre as rochas, com uma espingarda nas mãos. Era Denis O'Donell. Apertava
os dentes, com raiva.
— Imbecis! Deviam ter esperado! Convém-me que ninguém entre
no Lemhi antes da próxima Primavera. Só um Inverno e serei fabulosamente rico.
No Inverno os riachos arrastam mais areia aurífera, os índios fundem o gelo com
fogueiras e arrancam mais ouro que nunca! Mas essa gente vem estorvar-me!
Levantou a espingarda, apontando com cuidado. Queria
assustá-los, mas um homem como Denis O'Donell nunca fazia as coisas por
metades. Podia assustar a caravana e reduzi-la ao mesmo tempo. Por que não?
Apertou o gatilho.
No caminho, um homem que marchava agarrando as rédeas de um
cavalo, caiu com um rugido.
Roscher «Montana» deteve o seu cavalo, gritando a todos que
se abrigassem.
Denis O'Donell corria por entre as rochas, mudando de lugar
e disparando de novo. Queria dar a impressão de estarem vários atiradores na
passagem. Dessa vez não alcançou ninguém. A terceira, já noutra posição, abateu
um cavalo, que ao cair derrubou um carroção, provocando grande alvoroço na
caravana.
Algures uma criança começou a chorar.
O'Donell ainda disparou duas vezes mais, já de qualquer
maneira, e depois correu para o lugar onde tinha deixado o cavalo. Meteu a
espingarda no coldre da sela, cobrindo-a com uma manta de pele de ovelha e,
montando, rodeou um pequeno montículo, descendo à planície por outro lugar.
Roscher viu-o aproximar-se, agitando o chapéu e, por força de hábito, gritou:
— Não disparem! É o Denis O'Donell!
—Nós não disparamos, jovem — disse um «quáquer».
Roscher afastou-se do carroção atrás do qual se protegia,
fazendo sinal aos outros para que permanecessem cobertos. O'Donell chegou junto
dele, desmontou de um salto e atirou-se para trás do carroção, arrastando o
jovem consigo, enquanto gritava:
— Cuidado, essa encosta está cheia de índios! Que ninguém se
mostre! Consegui passar por milagre! Acertaram em alguém?
—Um morto, sim! Explique-se, O'Donell! Que se passa no
Lemhi? O coronel Morgan contava com a aprovação dos «arapahos» e agora
recebem-nos a tiro. Desde quando têm estes índios armas de fogo?
O'Donell fez uma expressão de desgosto.
— Pergunte-lhes a eles, quando os vir; mas têm-nas e sabem
usá-las, e não permitem que ninguém entre no território. Nós não podemos sair
do vale. Têm-nos cercados dia e noite.
— Que aconteceu ao correio que o coronel Morgan lhe enviou
há duas semanas?
O'Donell mentiu tranquilamente. Precisava que a caravana
retrocedesse.
—Não vi nenhum correio. Certamente esses diabos caçaram-no.
Retrocedam, depressa, não podem continuar! Tentarei salvar os meus guias! Um
deles morreu também!
O «Patriarca» escutava em silêncio. Quando O'Donell acabou
de falar, disse:
— Não retrocederemos, senhor. Esta terra foi-nos concedida
por vontade do Senhor, somos pacíficos e viveremos em harmonia com os índios,
respeitando-nos mutuamente. Viemos de muito longe para que retrocedamos agora. Só
acontecerá o que tiver de acontecer. Continuemos, senhor «Montanha».
O'Donell ficou vermelho de raiva.
— Têm muitas armas? Sabem o que os espera?
Roscher «Montana» bateu na sua espingarda, dizendo:
— Estas são todas as nossas armas, cartógrafo, e os meus
revólveres. Os «quáqueres» nunca andam armados.
Denis O'Donell, gritou.
— Estão loucos! Morrerão todos os que entrarem na passagem!
Você sabe-o, «Montana», você é responsável por eles! Essa passagem é uma
maldita armadilha, com milhares de índios à vossa espera!
Roscher «Montana» olhava para a passagem. Um homem podia
tentar passar, como o fizera o próprio O'Donell, mas uma lenta caravana de
gente inexperiente…
Além disso, um vento gelado começava a soprar, vindo do
Norte, e grandes nuvens escuras corriam pelo céu; naquela altitude, os nevões
chegavam quase sempre repentinamente.
— Receio que esta gente continue seja como for, O'Donell.
Nada pode detê-los.
O'Donell olhava para aqueles silenciosos homens, aos quais
nada parecia impressionar. Depois observou o céu. Se entrassem na passagem
saberiam que não havia nem um índio emboscado; depois do ataque ao correio do
coronel não tinham voltado a atacar. Estavam ocupados a encher novamente o saco
com pepitas de ouro. E se os «quáqueres» entrassem no Lemhi seria o final de
tudo para ele.
— Há uma possibilidade, Roscher: rodear o pico pela outra
ladeira... A viagem é mais longa... mas os «arapahos» não consideram esse
território como deles. Entretanto, vou tentar ver o chefe «arapaho». Tenho de
ajudar os meus guias.
Roscher ainda hesitava. O chefe dos «quáqueres» decidiu:
— Sigamos por esse caminho, jovem. É sem dúvida Providência
quem no-lo indica.
Roscher «Montana» aceitou.
— Tentaremos. Se as neves não se adiantarem, talvez
consigamos chegar ao Lemhi.
Denis O'Donell disse:
— Não nevará por agora. Que tenham sorte. Vou enganar outra
vez os índios.
Enquanto se afastava no seu cavalo, sorria feliz. Porque o
ar já cheirava a neve e dentro de poucos dias Lemhi ficaria completamente
isolado do mundo; a caravana de «quáqueres», com Roscher à frente, morreria
congelada no Saddle; nunca chegaria ao vale. «Terei até à Primavera para que os
«arapahos» trabalhem para mim. Quando chegar o degelo partirei para Oeste, com
um carroção bem carregado.»
Os «quáqueres» eram indomáveis. Pareciam guiados por uma
força interior que os fazia enfrentar fosse o que fosse. Roscher «Montana»
estava impressionado pela forma como aqueles homens e mulheres, e até as
crianças, abriam caminho por entre o mato, colocavam troncos no solo para
facilitar a passagem dos carroções, ou removiam as pedras e a terra que lhes
impediam o caminho.
O avanço naquelas condições, por uma encosta virgem do
enorme pico, era quase impossível, mas a caravana avançava, ainda que fosse
muito lentamente. E conforme subiam o frio ia-se tornando mais intenso e em
breve começou a chover, uma água gelada que era quase neve.
Roscher costumava adiantar-se sozinho, a cavalo, regressando
depois com ar sombrio. Uma dessas vezes disse ao chefe da colónia:
— Retrocedam. Ainda estão a tempo. Acampem no vale e na
Primavera poderão voltar a tentar...
O «Patriarca» negou, sorrindo:
— Impossível. Continuaremos...
Continuaram, internando-se na terrível montanha. Até que
sucedeu o que Roscher «Montana» tanto temia. Uma manhã, quando despertaram, a
neve cobria tudo. Os «quáqueres» permaneciam impassíveis. Roscher desesperava:
— Isto significa que não podemos retroceder nem avançar. E,
ainda por cima, os «arapahos» seguem-nos de dia e de noite!
— Não vi nenhum — disse o «Patriarca».
— Mas eles vêem-nos a nós, não duvide. Se tivermos de passar
aqui o Inverno, chefe, morrerão as crianças, e também muitos adultos.
O «Patriarca» continuava inalterável.
— O Senhor não nos abandonará. Vamos fazer uma pequena
exploração, jovem.
Deborah saiu do seu carroção, levando um recipiente para ir
buscar água. Roscher quis ajudá-la, mas o chefe não o consentiu.
— As nossas mulheres são muito capazes, jovem. Não é
trabalho de homem acarretar água.
Deborah afastou-se e Roscher foi selar o seu cavalo,
acompanhado pelo «Patriarca», e afastaram-se os dois também sobre a neve, pela
cornija que era a única passagem. A neve continuava a cair. Quinze minutos mais
tarde Roscher segurava o cavalo do seu companheiro, gritando:
— Para trás! Uma avalancha!
Refugiaram-se apressadamente sob uma saliência da rocha. Em
frente deles passou a avalancha, uma enorme massa de neve arrastando pedras e
troncos... Durante quase meia hora tiveram a impressão de que o pico Saddle se
desmoronava; depois, fez-se um silêncio frio e terrível.
Os dois homens saíram do seu refúgio. A cornija Unha
desaparecido diante deles e urna montanha de grandes pedras fechava
completamente a já difícil passagem.
— Bem, «Patriarca», você quis chegar a esta situação. Agora
não podemos sequer retroceder. Seria preciso abandonar os carroções, e mesmo
assim muitos morreríamos antes de chegarmos ao vale.
— Quem fala em retroceder? Isto é uma nova prova, para mostrarmos
se somos merecedores dos favores que recebemos constantemente. Continuaremos.
«Montana» irritou-se.
— Está louco! Como tenciona continuar?
— Abrindo caminho por entre esta barreira.
— E impossível. Precisaríamos de meses e morreríamos todos
de frio! Nem sequer com explosivos se conseguiria!
O «Patriarca» disse, calmamente:
— Temos explosivos num carroção. Reservava-os para abrirmos
poços. Se pensa que poderão ajudar-nos a passar, usá-los-emos.
«Montana» encolheu os ombros, resignado.
— Pode ser que abramos passagem, e também que provoquemos
avalanchas que nos enterrem a todos. Mas você ganha. Tentá-lo-emos quando
deixar de nevar. De que massa são vocês feitos?
Algumas centenas de jardas mais abaixo, carroções, cavalos,
homens e mulheres atarefados, lutavam contra uma enorme parede de pedra e gelo.
Os índios não falavam. Mas, de súbito, algo os sobressaltou. Produziu-se uma
pequena explosão e uma parte das rochas e do gelo saltou pelos ares. Os homens
da caravana soltaram gritos de alegria, e os «arapahos» puseram -se de pé e
correram para os seus cavalos. Os animais não podiam galopar sobre a neve. Já
bastante faziam avançando penosamente, atascando-se até aos curvilhões.
Tardaram quase um dia inteiro em chegar ao povoado, agora ocupado
quase cinicamente por mulheres e crianças. Os «tupis» de peles fumegavam pelo
orifício do cone; lá dentro, em covas feitas no solo, ardiam fogueiras, onde se
aqueciam pedras sobre as quais se vertia água, produzindo um vapor que envolvia
tudo.
Os homens procuravam ouro nos arroios, derretendo gelo para
poderem chegar à areia. Os quatro recém-chegados entraram no «tupi» principal,
onde um homem jovem falava com vários anciães. Era Moose Red, filho do chefe
dos «arapahos».
— Moose! Um desses homens que vieram do Este, pelo outro
lado das montanhas, domina também as pedras! Vimos como as faz voar. Está a
abrir passagem na encosta. Não é só o homem mau do rio que tem esse poder. Esse
outro homem branco também tem o raio na mão!
Moose Red pós-se de pé, olhando para o grupo de anciães. Um
deles disse lentamente:
— Só o urso pode lutar contra o urso, Moose. Moose Red
falou, furiosamente:
— Esse homem que também domina o poder da terra não pode ser
pior que o outro, o que tem o meu pai prisioneiro! É possível que nos ensine a
lutar contra ele, a vencer o seu poder. Os homens brancos usam poderes que nós
não conhecemos... Sabeis qual deles tem o fogo!
— Sim, vimo-lo.
Moose Red pegou na sua manta de vivas cores. Colocou um
gorro de pele e sobre os mocassins umas tiras também de pele.
— Façam sinais. Que voltem os homens que estão nos arroios.
Fizeram-se os sinais de fumo; ninguém que não fosse
«arapaho» poderia interpretá-los. Moose Red e os quatro vigilantes puseram-se a
caminho; iam deixando marcas atrás deles, para que os restantes homens pudessem
segui-los.
Quando chegaram ao alto da encosta, o nevão era mais intenso
do que nunca; lá em baixo, os colonos tinham interrompido o trabalho para
descansarem e aquecerem-se. As fogueiras fumegavam.
Moose Red ordenou que lhe mostrassem o homem que manejava os
explosivos.
— Aquele! O que veste como um caçador!
— É diferente dos outros. Assemelha-se aos que têm o meu
pai. Talvez pertença à mesma tribo, a que tem o segredo desse poder.
Ficaram imóveis. Pouco a pouco foram aparecendo outros
homens; Moose distribuía-os de forma que não pudessem ser vistos. Ao anoitecer,
em torno do acampamento dos confiados «quáqueres» havia mais de mil índios
espreitando, armados para a guerra.
Roscher «Montana» estava inquieto; várias vezes os cavalos
da caravana tinham relinchado, impacientes.
Roscher sabia que os cavalos eram muito sensíveis à
proximidade de lobos, ursos, e também dos «mustangs» montados pelos índios.
— Também é possível que os animais estejam a avisar-nos de
uma nova avalancha. Vou subir um pouco a encosta, para ver como está a neve —
disse «Montana» ao chefe dos «quáqueres».
Não levaria o cavalo; um passo em falso do animal, uma pedra
mal assente, poderia provocar a catástrofe. Envolvendo-se na sua grossa samarra
forrada de pele e levando a espingarda sob o braço, afastou-se do acampamento.
Era muito difícil caminhar sobre aquele plano inclinado, enterrando-se na neve.
Agarrando-se aos arbustos, foi subindo lentamente. Quando já
se tinha afastado bastante, ouviu pancadas no gelo. Alguém estava a fazer algo
muito perigoso ali perto.
Amaldiçoando o imprudente Roscher rodeou uma rocha.
Inclinada sobre uma lisa superfície de gelo, uma jovem tentava abrir um buraco
para chegar à água. Era Deborah; a seu lado tinha vários baldes. Ao ouvir os
passos de «Montana» ergueu-se, assustada.
— Oh! Tinha que...
— Que está a fazer aqui sozinha, longe do acampamento? —
perguntou Roscher, irritado.
— Procuro água. É esse o meu serviço... É melhor retirar-se,
senhor «Montana». Estou proibida de falar consigo.
— Não falará com ninguém, se continua a bater no gelo; ou
provocará uma avalancha ou enterrar-se-á no arroio gelado! Não precisavam de a
mandar buscar água, há neve por todos os lados e basta derretê-la!
— O «Patriarca» diz que ninguém deve iludir as suas
responsabilidades nem escolher o caminho mais fácil. Eu devo procurar água. Por
favor, senhor «Montana», vá-se embora! Proibiram-me de falar consigo,
proibiram-me, inclusivamente, de olhar para si!
«Montana» abafou um
protesto.
— Estão todos loucos! E eu também, por acompanhá-los! Vamos,
regresse para junto dos outros!
Segurou-a por um braço. Ela estremeceu, corando. E de súbito
deitou os braços ao pescoço de Roscher, que ficou bastante surpreendido. Não
esperava uma coisa daquelas da fugidia rapariga. Começou a murmurar:
—Deborah, pequena... eu...
Então compreendeu que não era amor, mas sim verdadeiro
terror o que havia nos olhos da bela jovem «quáquer».
Roscher «Montana» voltou a cabeça. Avançando silenciosamente
sobre a neve, várias dezenas de índios «arapahos» tinham-se aproximado. Rodeavam-nos
por todos os lados, apontando-lhes os seus arcos e as suas lanças. Qualquer
tentativa de defesa era inútil, especialmente tendo Deborah a seu lado.
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