Sem dúvida a Jovem Deborah tinha recebido uma dura educação, Entre os seus não havia excessivos sentimentalismos; aceitavam-se as disposições do destino com o maior estoicismo, Ela aceitou a morte dos pais e de todos os seus companheiros, limitando-se a voltar as costas a «Montana» para rezar. Depois, Roscher viu lágrimas nos olhos da bela «quáquer». Era um choro doce e resignado.
— Eles chegaram já à sua terra prometida — disse.
Roscher tinha decidido tentar o regresso ao Forte Butte. Os
«arapahos» deram-lhes cavalos e viveres e escoltaram-nos até às montanhas. Uma
vez aí «Montana» disse ao chefe John Moose que poderiam seguir sozinhos. Os
«arapahos» despediram-se com poucas palavras, regressando aos seus povoados.
«Montana» e Deborah começaram a internar-se na passagem,
onde a neve era muita, Nenhum carroção conseguiria seguir por ali, mas os
cavalos índios, com os seus cascos largos e peludos, avançavam com relativa facilidade.
Cavalgaram até ao entardecer. «Montana» procurava um lugar
para acampar, e quando o encontrou desmontaram.
— Vou procurar lenha sob a neve, Fique você sob essa rocha,
Junto do calor dos cavalos.
Deborah disse:
— Eu... prefiro ir consigo.
Apesar de todo o seu estoicismo, bem provado, era apenas uma
jovem que tinha medo da solidão. «Montana» sorriu, compreendendo.
— Bem, procuraremos lenha os dois juntos.
Deixaram os cavalos amarrados. Tinham passado por um bosque
baixo. Removendo a neve apareciam arbustos quase secos. «Montana» cortava-os a
golpe de faca, amontoando os ramos no solo.
Estavam os dois tão absorvidos no trabalho que não notaram a
silenciosa chegada de curiosos. Em determinada altura «Montaria» levantou a
cabeça, e a sua surpresa foi enorme. Os «quáqueres» que ele julgava soterrados
sob toneladas de neve na encosta estavam ali, turvos, com gelo nas barbas.
Iam-se aproximando. Com eles estavam as mulheres e as crianças. Saiam de entre
o pequeno bosque. Deborah gritou, alvoroçada:
— Pai! Mãe! Estão vivos! Estão todos vivos, Roscher!
Roscher «Montana» deixou de sorrir, porque os pais de
Deborah, que se encontravam no grupo mais próximo, não correspondiam à alegria
da filha, porque se deu conta da gravidade daqueles rostos.
O «Patriarca» destacou-se dos outros. Parecia envelhecido; a
fadiga tinha-o vencido.
— Por fim encontramos os dois pobres pecadores. Tantas horas
de caminhar. Mas era forçoso que os nossos caminhos se cruzassem. Roscher
«Montana», você encheu de vergonha o nosso povo. Sempre desconfiámos de si.
Perdeu uma pobre criança inocente, fazendo-a esquecer os seus compromissos...
Roscher ficou furioso ao ouvi-lo:
— Não seja tolo e deixe essa linguagem de melodrama! A
Deborah e eu fomos feitos prisioneiros pelos índios e o nosso único pecado foi
ter-nos deixado surpreender.
O «Patriarca» assentiu, com tristeza.
— E agora fugiam para Este, em vez de voltarem ao nosso
acampamento na encosta.
Os «quáqueres» aproximavam-se mais. As mulheres tinham
ficado para trás. «Montana» tentava acalmar-se. Aqueles fanáticos Irritavam-no.
— O vosso acampamento não existe! A Deborah e eu
julgávamo-los mortos! Uma avalancha arrasou tudo. Perderam tudo, carroções e
cavalos. Vocês salvaram-se por terem vindo à nossa procura. Escute,
«Patriarca», contar-lhe-ei o que se passou!
— Conte, jovem. Todos têm o direito de se defenderem.
Roscher contou a história de O'Donell, do seu ouro, dos
«arapahos» acobardados, da morte de O'Donell e dos dois guias. Os «quáqueres»
escutavam-no sem mostrarem demasiado interesse, nem sequer à menção da fabulosa
fortuna que os índios tinham levado para a sua montanha.
— O chefe Moose John vai devolver o outro aos arroios. Diz
que a eles pertence, que só tirarão o que for preciso para os seus adornos, do
mesmo modo que só matam a caça de que precisam para comer. Agora felicitem-se
por terem salvo as vossas vidas, ainda que tenham perdido tudo o mais. E
tentemos organizar o regresso a Butte, ainda que vá ser muito difícil. Não
poderão instalar-se no Lemhi antes da Primavera e será preciso que as autoridades
voltem a negociar com os «arapahos».
A mãe de Deborah era a única que de soslaio lançava olhares
comovidos à filha. Deborah tinha voltado à sua passividade resignada, olhando
para o solo sem dizer nada.
— Nós não regressaremos, jovem -- disse o «Patriarca». —
Você diz que salvámos as nossas vidas por sorte. Não é assim, as nossas vidas
estão traçadas. Salvámo-las para que pudéssemos cumprir o nosso dever de
perseguir esta pecadora e o homem diabólico que a perdeu. Nós continuaremos a
nossa viagem...
— Morrerão antes que consigam construir cabanas! O Inverno
ainda nem começou!
— Morrerão os mais fracos de entre nós, e os que restarem
construirão uma cidade. Nós nunca nos detemos. E a sua história pode ser
verdadeira, menos num princípio. Você veio connosco com a intenção de enganar a
Deborah. Só por isso, com o desejo de a subtrair à nossa autoridade e ao seu
destino.
Roscher «Montana» gritou, furioso:
— Sim, claro que sim! Vim porque a amo, porque queria
casar-me com ela! Mas não queria enganá-la, e quanto à vossa autoridade,
ninguém tem autoridade sobre a Deborah. É um ser livre e pode decidir da sua
vida como lhe parecer!
O «Patriarca» fez um gesto de pena.
— Compreendo. E aceito-o como uma confissão de culpa. Nós
não praticamos a violência, você sabe-o. Mas toda a culpa tem um castigo. Vocês
serão castigados...
Ergueu uma mão. Roscher tocou no seu revólver. Mas não podia
disparar contra aquela gente desarmada, contra aqueles loucos. Quis afastá-los,
mas eram demasiados. Não batiam, limitaram-se a imobilizá-lo, agarrando-o com
força. Depois de uns instantes de luta, Roscher ficou quieto.
— Como pensa castigar-nos, «Patriarca»? — perguntou,
furioso.
— O destino decidi-lo-á. Você e a Deborah ficarão aqui,
amarrados a estas árvores, e o destino decidirá...
— Sabe muito bem que o destino nos matará em poucas horas! É
a isto que chama não ser violento? Isto é assassínio! Não se atrevam a fazer o
mesmo à Deborah! Você foi o culpado de tudo ao enviar uma rapariga sozinha
procurar água num território selvagem, você...
«Montana» foi empurrado para uma das árvores e os «quáqueres»,
que não sabiam usar armas, mas sabiam fazer nós, amarraram-no com tremenda
força, imobilizando-o por completo. Amarraram depois as cordas aos ramos
baixos, para que Roscher não pudesse deslizar-se para o solo. Tiraram-lhe as
armas todas, incluindo a faca. Roscher tinha deixado de gritar insultos; era demasiado
orgulhoso para suplicar.
Deborah continuava imóvel. O «Patriarca» indicou-lhe outra
árvore e ela foi colocar-se encostada ao tronco. Começaram a amarrá-la, com a
mesma violência. Então Rocher gritou à mãe da rapariga:
— Senhora, é sua filha! Não o consinta! Vai morrer e está
inocente! Está inocente...
Deborah voltou a cabeça. Tinha os olhos húmidos, mas sorria.
— Não o sou, Roscher... Sou culpada, porque te amo, porque
estava disposta a fugir contigo. Devo ser castigada por isso, por faltar às
ordens do «Patriarca». Sou culpada...
A mãe de Deborah começou a soluçar. O marido afastou-a dali.
Outras mulheres, vestidas de negro com toucas brancas, rodearam-na. O
«Patriarca» disse:
— Se não fomos justos para com vocês, a Providência
salvá-los-á. Mas julgamos agir com justiça, A nossa consciência está tranquila.
Voltou-lhes costas e todos o seguiram. A comitiva de
enlutados «quáqueres» afastou-se sobre a branca neve e desapareceu na escuridão,
Não nevava. Tinha cessado o vento, mas a cada minuto que
passava a temperatura ia ficando mais baixa. A imobilidade naquele clima era
mortal, Roscher sabia muito bem. Era de Montana, onde os Invernos são muito
rigorosos. Tentou libertar-se das cordas, mas em breve compreendeu que era
inútil.
O frio entrava-lhe nas roupas, endurecia-lhe as
sobrancelhas, esticava-lhe a pele da cara, tornando-a dolorosa. Era apenas uma
questão de horas. O seu sangue ir-se-ia tornando cada vez mais espesso e
acabariam por morrer.
— Deborah... pequena... devia ter-te defendido a tiro. Não
imaginei que fossem capazes de te fazer isto, a que és uma dos seus...
— Meu Deus, virão os lobos!
— Os lobos não se atreverão a atacar-nos enquanto estivermos
vivos. Matar-nos-á o frio. É terrível morrer: precisamente agora, quando sei
que me amas, que estavas disposta a desafiar esse louco barbudo por mim...
A jovem chorava. «Montana» teve um acesso de raiva e só
conseguiu cravar mais as cordas na carne. Compreendeu que a única coisa que
podia fazer era distrair Deborah, tentar impedi-la de pensar no que os esperava.
Começou a falar. A temperatura continuava a descer.
A madrugada ia ser terrivelmente fria. Uma calma absoluta
rodeava-os... Deborah deixou de chorar.
— O frio... sinto-o cá dentro...
Uma hora mais tarde a jovem quase não respondia às palavras
de «Montana». Ele disse, com um esforço:
— Agora está a passar o frio, não é verdade? Talvez nos
salvemos ainda.
Mas o frio era muito mais intenso. A rapariga começava a perder
a sensibilidade. Roscher quase chorava de raiva, de impotência. Fez novos
esforços para soltar-se. Não sentia já a mordedura das cordas. Também ele
ficava Insensível. De vez em quando chamava a jovem. Ela movia a cabeça, mas
não respondia.
Roscher perdeu por completo a noção das coisas. Não soube
quanto tempo esteve desmaiado. Já não sentia o frio. Envolvia-o um estado de
letargia quase agradável.
— É o fim... Dentro em pouco o coração deter-se-á. Deborah!
Pobre criança!
Fechou os olhos. Quando os voltou a abrir, julgou estar
sonhando. Havia um pouco de luz, tudo parecia azulado. Com muito esforço
conseguiu voltar a cabeça. Deborah estava inconsciente.
— Talvez morta, já!
Quis chamá-la, mas a voz não lhe saia da garganta. Começava
a amanhecer, Era o momento de mais baixa temperatura. Roscher voltou a fechar
os olhos. Antes de perder a consciência, ouviu um leve ruído. Pensou:
«Lobos!»
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