Uma dor aguda, muito viva, que lhe percorria todo o corpo como se lhe cravassem milhares de pequenas agulhas, acordou Roscher «Montana». Com os olhos ainda fechados, recebeu uma sensação intensa.
— Calor! Está calor!
Através das pálpebras viu um brilho avermelhado. Levantou-as
por fim, e as chamas deslumbraram-no. Calor! E aquela dor era provocada pelo
seu sangue, circulando de novo, velozmente. Muito calor!
Uma voz disse:
— Afastem-nos, que vão queimá-los. É demasiado fogo.
«Montana» moveu os lábios. Conseguiu emitir um som.
— Deborah?
Uma voz de mulher respondeu-lhe:
— Está bem, filho... Vive, como tu.
— Não viverão se não os afastarmos do fogo — disse outra
voz. — Devem aquecer-se pouco a pouco.
A voz dura do «Patriarca» dos «quáqueres» escutou-se de
novo:
— Dêem-lhes um pouco de bebida.
Roscher «Montana» respirava com ânsia. Quando conseguiu
novamente abrir os olhos viu Deborah estendida a seu lado; pegou numa das mãos
da rapariga; ninguém lho impediu. O «Patriarca» e outros homens atendiam ao
fogo; as mulheres cuidavam de Roscher e de Deborah; cobriam-nos com mantas,
davam-lhes bebidas quentes...
Ia a manhã em meio quando Roscher conseguiu sentar-se e
sorrir a Deborah, envolta em mantas, e feliz, cuidada pelos pais. «Montana»
olhou para o chefe dos «quáqueres».
— Que o fez voltar? Não estava seguro da sua justiça, chefe?
O velho assentiu:
— Sim, estava... Somos um povo justo, servimos uma Lei
justa. Mas... esta noite sucedeu algo que me fez duvidar. Talvez eu não tenha o
direito de ser intérprete da Justiça. Nós, os «quáqueres», servimos rigidamente
uma moral... Pensava que nada poderia desviar-nos dela. A Deborah tinha pecado
e devia ser castigada... Mas esta noite...
—Que sucedeu esta
noite?
O «Patriarca» abanou a cabeça, abatido.
— Aquela sua história, «Montana» ... Aqueles sacos de ouro
que os índios vão devolver à Natureza... Não voltámos todos a este lugar,
rapaz. Faltam quinze dos nossos, quinze homens honrados, justos, que obedeciam
às minhas ordens, que os amarraram às árvores temerosos de Deus e que odiavam a
violência. Faltam quinze dos meus homens. Separaram-se de nós. Tinham armas
escondidas entre as roupas, sem que eu o soubesse; sempre as tinham tido;
abandonaram as mulheres e os filhos, faltaram a todas as suas promessas, riram-se
de mim. Quinze homens que eu julgava livres da ambição de fortuna e do demónio
da violência. E foram procurar os índios para lhes arrebatarem o seu ouro! Por
isso, rapaz, compreendi que não tinha o direito de o condenar a si e à Deborah.
Foi tudo um fracasso. O ouro descobriu as verdadeiras personalidades desses
quinze homens, descobriu as armas que escondiam. Por pouco não nos mataram a
todos. Depois foram para matar os índios, para derramar sangue por dinheiro.
Voltei rezando para vos encontrar com vida. O meu povo já não existe. Esses
cederam por ambição de riquezas; ela, a Deborah, por amor; outros fá-lo-ão por
ódio, ou por desejo de mandar...
Roscher «Montana» disse:
— Foi demasiado otimista, demasiado simples. Os homens não
são melhores nem piores que os outros. Em cada grupo encontra-se de tudo, seja
qual for a sua raça ou o seu credo. E é preciso ser tolerante para com os
outros, «Patriarca».
—Não para com esses assassinos! Eu trouxe-os ao Lemhi! Os
«arapahos» cediam-nos as suas terras, aceitavam-nos como vizinhos, e esses
quinze homens vão matá-los e roubá-los!
Roscher pôs-se de pé, para comprovar que as pernas lhe
obedeciam. Deborah estava resplandecente de felicidade. O pai parecia
envergonhado da sua emoção. A mãe da jovem não deixava de rir e beijar a filha.
«Montana» inclinou-se para a jovem.
— Senhora, quero avisá-la de que a sua filha e eu voltaremos
a Butte, onde tenho o meu trabalho. Casar-nos-emos no forte. Lamento pelo homem
que esperava casar com ela.
A mãe de Deborah respondeu, lentamente:
— Esse homem é um dos que nos abandonaram, senhor Roscher.
Sei que fará feliz a minha filha, ainda que não seja «quáquer». Têm os dois a
minha bênção.
O pai não dizia nada.
Roscher beijou a jovem com suavidade; ela corou, olhando assustada
para os pais. A severidade dos «quáqueres» estava a desmoronar-se
O chefe, no entanto, tinha algo a dizer. Pôs uma mão sobre
um ombro de «Montana».
— Rapaz. Sei que não temos o mínimo direito sobre si, mas
você é o único que pode guiar-nos no Lemhi. Peço-lhe por nós, trata-se de
evitar muitas mortes. É preciso impedir que esses quinze infelizes encontrem os
índios. É necessário detê-los.
— Com os meus dois revólveres, chefe?
«O Patriarca» fez um gesto de desalento.
— Confio em que não disparem contra nós, que não cheguem a
tanto.
— Chefe, se esses homens decidiram esquecer tudo incluso as
famílias, para conseguirem o ouro, dispararão. E fá-lo-ão quase com gosto, para
não deixarem testemunhas da sua canalhice.
O «Patriarca» murmurou, resignado:
— Então leve a Deborah e que tenham muita sorte. Nós
procuraremos esses criminosos. É o nosso dever. Fui eu quem os trouxe a esta
terra, não posso permitir que a cubram de sangue. — Você é duro, chefe,
inflexível, mas não há dúvida de que é leal consigo mesmo. Tentarei ajudá-lo.
Entre outras razões por que os «arapahos» são boa gente e nunca se sabe até
onde pode chegar uma guerra com os índios.
—É inútil! Estamos a dar voltas no mesmo sítio! É a segunda
vez que passamos em frente desse monte. Quem foi o imbecil que pensou que
poderíamos encontrar os índios? Devem estar a vigiar-nos e acabarão connosco
quando quiserem!
— E essa história do ouro! Talvez fosse invenção do rapaz,
para que o deixássemos em paz!
Um dos homens apontou, para longe:
— Aquilo ali parece uma choça!
— É um monte de mato!
— Estaria coberto de neve! É uma choça que teve calor até há
pouco tempo!
Retomaram a marcha mais animadamente. Algumas armas, antiquadas,
mas em bom estado, apareceram nas suas mãos. Detiveram-se todos perto da choça,
observando-a em silêncio.
— Não sai fumo, está abandonada. Não há pegadas em torno
dela.
— As pegadas desaparecem num minuto, com este vento. Muito
cuidado.
Entraram finalmente na choça. Com efeito, estava vazia.
Havia restos de uma fogueira, já frios. Os homens revistaram tudo. Um deles
murmurou, excitado:
— Eh! Olhem aqui!
Tinha levantado uns ramos. Na semi escuridão da choça, algo
brilhava no solo. Partículas douradas. Fez-se silêncio, até que alguém disse:
— É ouro... O solo está pisado, como se tivesse suportado um
grande peso.
— Os sacos de que falou o guia. Estiveram aqui! Era verdade,
os índios levaram-no já para as montanhas!
O ouro existe! E vão atirá-lo para os arroios!
Os quinze homens estavam pálidos, Tinham deixada de notar o
frio. Alguns sorriam. Outros praguejavam.
— Já deve ser tarde! Não sabemos onde esses selvagens têm o
seu acampamento!
Acenderam uma fogueira, enquanto discutiam como deviam agir.
— Bastaria apanharmos um desses índios. Obrigá-lo-íamos a
guiar-nos. Segundo parece, são muito pacíficos e devem ignorar o valor do ouro.
Saíram da choça. Olharam para a grande montanha que fechava
o Lemhi pelo Norte. Um deles pôs-se a rir.
— Aquilo ali não é fumo? E ali, não é fumo também?
— Claro, os índios também precisam de acender fogueiras para
se protegerem do frio! Estão ali!
Um, mais realista, avisou:
— A muitas léguas de distância. E há várias centenas deles
nessa montanha.
Mas a recordação das partículas douradas que tinham visto na
choça voltou a inflamá-los. Nem sequer quiseram perder tempo para comerem
qualquer coisa. Retomaram o caminho da montanha, guiados pelo fumo das
fogueiras dos «arapahos».
*
Era como se uma força misteriosa impulsionasse aqueles
quinze homens inexperientes, uma força que os fazia resistir ao frio, ao vento,
que os fazia levantarem-se rapidamente quando caiam.
De vez em quando, o mais forte deles, Jonathan, gritava-lhes:
— Rápido, não se detenham ou só chegaremos quando o ouro
estiver na água!
Os homens trepavam pelos penhascos, ferindo-se nas mãos
quase geladas. Escorregavam e praguejavam. Não se pareciam em nada com os
homens que pouco tempo antes seguiam silenciosamente o «Patriarca», A sua verdadeira
personalidade estalara violentamente ao brilho do ouro.
O desalento começava a apoderar-se de todos, antes da
fadiga, quando um deles assinalou algo no solo. Duas marcas profundas que
rasgavam a neve, passando em frente deles.
— Que é isto? As rodas de um carroção?
Jonathan negou.
— Não, nenhum carro pode passar por aqui. São marcas
deixadas por essas espécies de macas que os índios usam para o transporte. Duas
varas arrastadas por um cavalo. Eles ainda não usam a roda! E passou por aqui
há muito pouco tempo. Ainda não foram cobertas pela neve!
Os quinze homens voltaram a ganhar esperança. Jonathan
dividiu-os em dois grupos, pois não sabia de que direção viera o cavalo que
arrastara a carga. Mas averiguaram-no pouco depois.
Para a direita ouviram pancadas compassadas, violentas. Os
«quáqueres» reagruparam-se e com o maior cuidado dirigiram-se para o local de
onde vinham os ruídos.
Jonathan, decididamente convertido em chefe do grupo,
indicava-lhes os movimentos a efetuar. Foram avançando com muito cuidado,
cobrindo-se sempre com pedras e arbustos. E por fim viram de onde procediam os
ruídos: Vários cavalos, com as suas cargas, estavam perto de um rio
completamente gelado. Oito índios afadigavam-se em quebrar o espesso gelo. Usavam
machados de pedra e mocas e o trabalho era difícil.
Jonathan olhou para os fardos que os cavalos levavam sobre
as macas e crispou as mãos.
— O ouro! Vão atirá-lo ao rio!
Voltou a cabeça, olhando para os seus homens. Tinha na mão
um revólver. Agitou-o e os restantes «quáqueres» imitaram-no. Todas as armas
eram curtas; os que estavam mais longe do rio arrastaram-se sobre a neve, para
se aproximarem. O barulho que os «arapahos» faziam batendo no gelo facilitava o
avanço dos seus inimigos.
Por fim, Jonathan julgou chegado o momento. Disse ao homem
que estava mais perto dele:
—Ë preciso matá-los a todos. De contrário seguir-nos-iam.
O homem que recebeu a ordem transmitiu-a a outro. Nenhum
deles se alterou. O «Patriarca» teria ficado assombrado, se pudesse observar
aquela mudança em quinze homens que julgava justos e honrados.
Jonathan apontou cuidadosamente a sua velha arma ao mais alto
dos «arapahos» e, com o mesmo cuidado, apertou o gatilho. O índio tombou sobre
o gelo, largando o seu machado. Os outros começaram a voltar-se, surpreendidos,
quando de vários pontos choveram sobre eles novos projéteis. O tiroteio foi
curto, mas intenso. Os oito habitantes da montanha ficaram estendidos sobre o
gelo, que começou a manchar-se de sangue.
Os «quáqueres» correram para eles. Só três se deram ao
incómodo de verificar se algum vivia. Os outros rodearam os cavalos.
Jonathan pôs-se de joelhos sobre a neve, desamarrando a fita
de couro que fechava um dos fardos. A sua impaciência tornava mais desajeitadas
as suas geladas mãos. Por fim, conseguiu meter uma delas num fardo e tirar um
punhado de areia dourada, entre a qual havia algumas pepitas de bom tamanho.
Olhou para os seus companheiros, rindo nervosamente. Depois fechou o saco,
levantou-se e colocou-o sobre o cavalo.
— Estão mortos? — perguntou.
— Sim, os oito. Parece que não fizemos nada mal, apesar da
pouca prática.
Jonathan voltou a rir. Mas olhava com inquietação à sua
volta.
— Os tiros devem ter sido ouvidos em toda a montanha e pode
ser que haja mais índios pelas redondezas. Temos de fugir quanto antes e levar
o ouro.
Os quinze homens apagaram os seus sorrisos; o pânico
apoderava-se deles. Jonathan agarrou um dos cavalos pela rédea de couro e, sem
esperar mais, afastou-se com ele em direção à planície. Os outros seguiram-no.
Alguns incitavam os animais, batendo-lhes nas garupas.
— Depressa! Depressa!
— Quando chegarmos à planície, iremos para Oeste — disse
Jonathan.
— Depressa! Depressa!
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